Via Spiritus 13 (2006) 97-119
Da Bíblia à Poesia – Jacob e Raquel:
outros são os degraus
Nous ne faisons que nous entregloser
Montaigne
A Bíblia constitui, desde muito cedo, o grande código estruturante
da globalidade das literaturas europeias. Convocado para a orquestração de
textos vários, em subtis ou manifestos veios, este fecundo repositório sagrado
ressurge em momentos vários da literatura mundial, numa tensão dialógica que
urge percepcionar em todo o seu alcance. A sua convocação, ao mesmo tempo
que explicita a identidade que alimenta grande parte do património textual da
humanidade, permanentemente reinventa esse fundo comum, pelas dinâmicas
próprias dos autores, dos tempos, dos grupos, dos géneros literários.
Assim acontece com a tematização das figuras de Jacob e Raquel, que
significativamente vemos migrar, desde muito cedo, para tratados espirituais e
para obras de devoção, textos líricos profanos, sermões, poemas heróicos, ora
produzidos em esfera monástica, ora resultantes da actividade concionatória, ora
emergentes em ambientes poéticos de corte.
A literatura conventual feminina portuguesa, que emerge com toda a
vitalidade nos sécs. XVII e XVIII, revela, nesse campo, um papel preponderante,
confirmado nas inúmeras produções líricas e narrativas que tomam como matriz
esse fecundo património textual do Antigo e do Novo Testamento. Aí se encontra,
por exemplo, um poema de Soror Madalena da Glória
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, intitulado «Canto. Jacob e
Raquel», estruturado em 159 oitavas decassilábicas inseridas em final do capítulo
dedicado a Santa Bárbara, por sua vez pertencente à mais vasta obra da autora,
1
Soror Madalena da Glória foi religiosa franciscana no Convento de Nossa Senhora da Esperança, em
Lisboa. Nasceu em Sintra em 1672
e morreu em Lisboa, aproximadamente em 1759.
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Isabel Morujão
intitulada Orbe Celeste, um conjunto de narrativas aglutinadas em torno de certas
figuras do mundo hagiográfico, editado em Lisboa em 1742. Mas encontra-se
também significativo exemplo da mesma atitude poética (um poema heróico) em
torno destas mesmas personagens do Génesis, no manuscrito inédito de Manuel
Nogueira de Sousa
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, «Canto dos Amores de Jacob e Raquel», um poema de 100
estrofes em oitava rima, sem divisão em cantos, guardado no Ms. F.R. 1356, fls.
66-91v, da Biblioteca Nacional de Lisboa, outrora da colecção do Marquês de Sá
da Bandeira.
São, portanto, estes dois textos
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, pertencentes ao mesmo fundo de
homeostase sistémica, coincidentes na tematização que fazem das personagens
bíblicas e na opção pelo discurso poético heroicizado, que iremos tomar como
ponto de partida para algumas reflexões em torno da viagem sempre surpreendente
da Bíblia para a poesia em língua vulgar.
Logo no séc. VII, no Médio Oriente, a valência significativa deste episódio
bíblico parece ter estado na génese de um livro de formação monástica, escrito em
grego por S. João Clímaco, e cujo afortunado destino junto do mundo religioso
ocidental tem sido objecto de variadas explicações
: a Escada Espiritual ou Escada
do Paraíso, traduzida para latim por volta de 1300 por Ângelo Clareno. De facto,
subjacente à estruturação de regras monásticas, a obra parece ter-se revelado, nos
trinta pensamentos que a estruturam e que aí se designam por degraus, um marco
fundamental na reforma monástica medieval, que a tomou como matriz mais ou
menos velada, consciente da urgência de autenticidade na vida religiosa. E desde
então não cessou de condicionar, quer a expressão alegórica da subida ascética
do homem a caminho da mão divina que tal escada estendeu, quer a urgência do
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Manuel Nogueira de Sousa, segundo o testemunho de Diogo Barbosa MACHADO, na Biblioteca