Revista Tempo Brasileiro,
a grande façanha da identidade consiste na definitiva arquitetura do conceito de
ficção, que ultima em pleno século XVIII. Neste momento, a cultura e a arte,
porque divorciadas da antiga representividade pública, esclesiástica e cortesã,
constituem esferas separadas da reproduçã o da vida social e passam a servir de
suporte ao ‘processo de autocompreensão das pessoas privadas’. (DIAS, 1995,
97)
Observa -se, a partir daí, uma transformação na relação entre escritor e leitor, e entre
leitor e o texto. A exposição da subjetividade, impondo-se através do relato autobiográfico,
com o artifício da narração através de cartas e diários simulados, vai-se tornando “critério
de validação do romance”, uma vez que vai criando meios de estabelecer empatias e
identificações entre autor e receptor, estreitando de tal maneira esta relação que a ficção
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A expressão é usada por L. Costa Lima em Sociedade e discurso ficcional.
produzida pelo eu deixou de ser entendida como invenção, passando a ser considerada
manifestação da realidade.
Rousseau foi um dos primeiros a experimentar a glória do “pacto autobiográfico”,
estudado por Lejeune. Ensinando os leitores a ler, o genebrino solitário, através de suas
cartas, tentava tocar suas vidas interiores, abrindo as portas para o romantismo. Esta
estratégia requeria uma ruptura com a literatura convencional: em vez de se esconder na
narrativa e manipular personagens- fantoches, Rousseau lançava-se em suas obras e
esperava que o leitor fizesse o mesmo. E, deste, modo, não podemos deixar de citar os
personagens do primeiro e grande romance de Rousseau, Nova Heloísa, que se atiram à
leit ura com a mesma entrega que o autor dedicou à leitura dos romances que sua mãe lhe
deixara. Como se trata de um romance epistolar, a trama desenvolve-se através da troca de
cartas. A vida não pode ser dissociada da leitura nem o amor, da escrita de cartas amorosas.
Na verdade, os amantes ensinam um ao outro a ler, da mesma maneira como ensinam-se
mutuamente o amor.
Nos prefácios desta obra, ele discute a leitura e a maneira de ler seu romance. Uma
espécie de defesa pessoal da acusação de estar publicando um romance, tendo em vista que,
para a época, os romances eram vistos ainda como perigo moral, especialmente quando
abordavam o amor e seus leitores eram as jovens senhoras. No entanto, ali estava ele,
exibindo seu nome num obra que falava de um tutor que seduz sua aluna e, mais tarde,
reúne-se a seu marido, num verdadeiro menage à trois.
Segundo E. Cassirer,
Antes de Rousseau, a sensibilidade lírica original parecia quase completamente
esgotada na França; até mesmo o nome e a peculiaridade do gênero lírico
pareciam esquecidos pela estética francesa. (...), e se o verso adquire uma
mobilidade e uma leveza jamais obtidas, esta leveza advém justamente do fato de
ele não estar mais sobrecarregado com um conteúdo verdadeiramente poético. Ele
se tornou um mero invólucro que se submete à idéia; serve como roupagem a
uma verdade filosófica ou moral; é um recurso cômodo para se atingir um
objetivo didático (...) surge, assim uma época na literatura francesa denominada
la poésie sans poésie. (CASSIRER, 1997, p. 82)
Esse problema existente na língua e na literatura francesas é quebrado somente por
Rousseau.
Escrito no momento em que rompia com Diderot e o grupo de filósofos, quando
gozava do reconhecimento por sua virtuosa moral sobre as artes e as ciências, Rousseau
alegou que Nova Heloísa não seria um romance, e sim uma coleção de cartas que ele estaria
apresentando na condição de editor, que reproduzia a comunicação de duas almas. Tratava -
se da escrita de gente estrangeira, muito humilde, que não interessaria, portanto, ao público
sofisticado da elite sócio-cultural. O leitor ideal deveria se despojar das convenções da
literatura bem como dos preconceitos da sociedade, o que evidentemente já representava
uma provocação política, pois deixava clara a sua insinuação de que a literatura era um
instrumento de que se havia utilizado o Antigo Regime. Para ele, a própria filosofia tornara-
se um modismo, sinônimo da sofisticação parisiense, então, buscou inventar uma nova
fórmula de fazer literatura, na qual pudesse defender a causa da virtude, apelando não para
o cidadão mas para o homem.
Rousseau tornou-se, portanto, o descobridor e o reanimador do mundo lírico. Foi a
reaparição desta força lírica que tanto impressionou e comoveu os contemporâneos de Nova
Heloísa. Eles não consideraram este romance uma obra da imaginação; sentiram-se
transportados do círculo da literatura para o centro de uma nova existência. O genebrino
solitário despertou antes de todos para esta Vita Nuova a partir da relação imediata com a
natureza, e foi o primeiro a despertá-la nos outros.
A retórica de Rousseau abria portanto um novo canal de comunicação entre dois
seres solitários, o escritor e o leitor, e reformulava seus papéis. O autor seria o estrangeiro,
profeta da virtude, e o leitor seria qualquer um que pudesse entender a linguagem do
coração. Há aqui um paradoxo evidenciado: se por um lado ele revolucionava o estatuto da
ficção, por outro, deixava clara a exigência de ser lido como o profeta da verdade absoluta,
retomando, assim, a maneira de ler que parece ter prevalecido nos séculos XVI e XVII: ler
para absorver a palavra de Deus. Este tipo de leitura parecia exigir do leitor um ato de fé,
uma fé incondicional no autor, que relacionou toda a sua obra consigo mesmo, com seu eu,
iniciando uma nova concepção de autor, que atingiria seu auge em Confissões. O
desvelamento de suas falhas morais, a partir da experiência da memória contada, enfatizava
sua honestidade, e criava um autor ideal, que falava do fundo do coração, uma espécie de
semideus. A partir daí, abria-se o caminho para a época da sensibilidade, e para o
Romantismo alemão e francês.
Esta busca desesperada pela verdade do ser, pelo conhecimento de si mesmo e pelo
reconhecimento dos outros perpassou toda a obra de Rousseau e some nte através do apelo à
linguagem pôde tomar corpo o seu projeto de dissolver os obstáculos do mundo exterior; a
linguagem será portanto a “potência mágica” que poderá transpor a distância que não
consegue atravessar por meio da ação. Se uma das principais características da
modernidade é justamente a dessacralização da arte e do artista, é interessante notar o
caráter “democrático” das Confissões de Rousseau.
Como assinalou Costa Lima, em Sociedade e discurso ficcional, nesta obra “todos
os homens são igua is”. Não devemos lê- la tomando-o como um sujeito autoritário, mas
como alguém que queria apenas ser compreendido. Porém, o próprio Rousseau, muito cedo
em seu relato das Confissões, perceberá que não basta ser “transparente” para ser bem
compreendido, e esta tentativa será realmente frustrada, restando a ele apenas o imaginário,
o devaneio, o recolhimento em sua intimidade, o entreter-se consigo mesmo, que consistirá
na consciência de sua própria solidão.
Segundo a análise do rousseauísta Starobinski, esse recuo para o imaginário e para a
intimidade do eu solitário traz em si “algo de ambíguo”.
De um lado, para Rousseau, é um retorno à independência total, à suficiência
perfeita do sentimento imediato. Mas, objetivamente, para nós, há aí um rodeio
com a finalidade de captar os olhares por meios que a presença física, por si só,
não possuía. Fazendo apelo à linguagem, a alma única de Jean-Jacques recorre à
mediação universal para melhor se manifestar em sua singularidade e em sua
hostilidade com o resto do mundo (...) tornar-se atraente sem se desprender de si
mesmo (...) Obter a atenção, a simpatia, a paixão dos outros, mas sem fazer nada
que não se abandonar à sedução de seus caros devaneios. Assim, ele será um
sedutor seduzido. (STAROBINSKY, 1991, p. 181)
A perseguição que enfrentará por parte da sociedade é para Rousseau o próprio
aprisionamento, mas percebe-se aqui um jogo duplo: ao expor o seu eu aos olhos dos
outros, fica claro o seu desejo de incitar um determinado tratamento, mas provoca essa
resposta como se não houvesse feito nada para tal comportamento, fingirá por vezes
surpreender-se. Para tal exposição do eu se utilizará de recursos de estilística (como a
presença repetitiva do adjetivo só), que darão o tom de súplica, enfatizarão seu
desapontamento com o mundo e tentarão explicar seu afastamento. Quisera ser apenas ele
mesmo, a sua vida interior. Sua solidão é seu refúgio, mas também é o modo de eximir-se
dos meios pelos quais é preciso passar para ir ao encontro dos outros. Ele espera fazer-se
amar sem fazer outra coisa senão ser ele mesmo.
Na verdade, Rousseau não quer assumir os riscos e as dificuldades que se interpõem
na comunicação direta com o próximo, perde assim a “verdade” de seu contato com o
outro, encerrado que está no abrigo inviolável de sua própria consciência. Por não ter
encarnado os “fantasmas” da ação mediadora, por não ter tido a vontade de se engajar
diretamente no universo do embate com o outro, define-se como escritor, como primeiro
romântico, pois não teve que transpor o caminho tortuoso que leva aos corações, não se
preocupou em estabelecer laços reais com ninguém, perdendo pois, a capacidade de viver a
"pureza de um sentimento" imediato.
Starobinski afirma que graças a esse despojamento, contudo, Rousseau escapa a
todo domínio, e torna-se invulnerável.
No momento em que o despojamento é consumado, no momento em que ‘de pior
nada mais é possível’, Rousseau recebe a revelação de uma liberdade que nada
pode destruir. A consciência permanece intacta, e provida de uma liberdade que
nada pode destruir. A perda de tudo transforma -se em posse absoluta, pois o
extremismo da adversidade põe em evidência esta parte do ser que jamais lhe será
tirada. (STAROBINSKY, 1991.)
Nesse sentido, pode-se dizer que sua própria alma é a única coisa que os homens
não podem dele levar.
Mas é em Os devaneios do caminhante solitário que esta tal liberdade, objetivo
maior do escritor romântico, assume sua mais fiel representatividade. Nesta obra, publicada
em 1782 como continuação de Confissões, só que orientada para uma nova ótica, ele
inovará tanto na forma como no conteúdo, desde a primeira frase: “Eis- me, portanto,
sozinho na terra...”(ROUSSEAU, 1986, p. 23), que constitui o cerne deste texto. Nesta
obra, dividida em dez Devaneios, a solidão, aqui entendida como liberdade do ser, está
expressa na busca de si mesmo, e especialmente da felicidade, a necessidade de amar e ser
amado, mas tudo resumido na tranqüilidade de se saber bastar-se a si mesmo. Este eu não é,
portanto, totalmente solitário, já que conta com a presença de Deus e seguirá neste eterno
caminhar para dentro de si que culminará com o retorno ao seio da mãe que nem mesmo
conheceu, evidenciado no décimo e último devaneio.
Segundo Jean Starobinski (1991), nesta obra o eu é sempre protagonista, e é para ele
que escreve, pois a palavra aqui não está mais voltada para o exterior e sim para a
indagação de seu próprio destino. No entanto, diante da incansável busca de si mesmo,
nesta necessidade de isolamento, ele se deparará com os outros, e com o não-eu, seu
alterego, que só pode se concretizar no Absoluto, no qual o eu encontra sua plenitude,
dirigido apenas pela força de sua intuição.
Ciente de que sua fala é incompleta, mal- interpretada pelos ouvintes, Rousseau
escreve suas Confissões, que serão lidas por Jacques Derrida, que a partir delas explicita
uma teoria do suplemento, revendo as relações da escrita como complemento da fala. Esta
realidade interior desconhecida da sociedade é então partilhada pela escrita que
suplementará os signos enganadores da fala. Ele precisa de signos porque as coisas elas
próprias não se bastam. Do mesmo modo, alguns objetos se interpõem entre os personagens
funcionando como suplementos ou substitutos de sua presença. Se ao escritor parece restar,
ainda nesta fase, a esperança, através da escrita como artifício de suplemento, já nos
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