generosa, em declarada analogia ao verso de Rilke, é capaz de trazer alguma resposta às
angústias dos personagens de “A Ceia”. O que explica o poder da metáfora e dos símbolos
na obra da autora, onde o não-dito e o gestual são sempre mais importantes que qualquer
ação.
Quando dissemos no capítulo anterior que a linguagem no conto de Lygia aprisiona
os personagens numa sala de espelhos – mais, num labirinto de espelhos –, apontamos para
o quanto estão enredadas com a realidade (leia-se, sobretudo, finitude) num nível extremo
de consciência. É pela lucidez que não conseguem agir; sentem-se paralisados pelo excesso
de pensamento, seres hamletianos que são. Exatamente por isso seus contos se acham num
ponto avançado, crítico, da modernidade, quando não há mais equilíbrio entre ação e
pensamento. Para agir, é preciso não pensar em excesso, como é o caso da jovem dos
“ossos de aço”, de “A chave”, ou é necessário ter um dom premonitório, como em “As
pérolas”. Qual será então o recurso típico do melancólico, daquele que escapa do mundo
prático da ação? A memória. Tal como cigarro, falso alento, parceira da solidão e da
melancolia, a memória muitas vezes será seu principal alimento.
A linguagem da memória tece uma grande teia nos pensamentos até que o indivíduo
se vê enclausurado na tal sala de espelhos. Cada lâmina desta sala pode vir a manifestar
uma realidade: por vezes, a de sujeitos paralisados, flagrados em sua inadaptabilidade ao
meio; noutras, uma espécie de revide do sujeito ao inapreensível, como se pela memória ou
pelo sonho fosse possível recuperar-se o elo perdido com a verdade interior, o que só
reforça a ressonância da literatura romântica na obra da autora.
No entanto, o que observamos, numa análise mais cuidadosa é que, muitas vezes, o
mundo do devaneio e da memória em que mergulham os personagens, enquanto tentativa
de renovação, é o mesmo das narrativas fantásticas, o que deixa mais uma vez, em aberto a
questão da autentidade do discurso. Os mesmos elementos que compõem uma literatura de
atmosfera, ao estilo de Edgar Alan Poe ou Hoffmmann, povoada de jardins, perfumes,
ossos, luzes débeis e outros detalhes fantasmagóricos, estão presentes na experiência
memorial da ficção curta desta autora.
Tudo é possível na escrita mítica de Lygia Fagundes Telles. Há nela uma
recorrência ou circularidade de signos que cumprem uma órbita. O universo de Lygia é
compacto, coerente e ordenado, isto, claro, do ponto de vista temático. Tendo em vista este
aspecto em sua obra, afastamos de imediato a impressão de caos ou falta de lógica interna.
O caos se instaura, portanto, como um princípio filosófico, como inerente ao mundo desde
sempre, próprio da condição humana, ainda que esta cultive seus desvios de atenção
(memória, religiosidade, misticismo etc.). É o caso da personagem Alice, de “A ceia”, que
se esquiva da luz do isqueiro que traz à tona a crueza de sua realidade e também o de
Tomás, de “A chave”, que vive fugindo dos espelhos que sua vaidosa Magô espalhara pela
casa, ou até do anão-narrador, que desvela a trama grotesca e sem sentido da vida de uma
família. Ao fim e ao cabo, todos fazem parte de um grupo compacto, em tudo semelhante,
girando em torno da mesma solidão.
Única certeza do sujeito esfacelado, a solidão projeta-se ameaçadora sobre todo o
corpus analisado, e pode ser vista na obra de Lygia como a grande morte e/ ou metamorfose
final e implacável deste sujeito.
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