grottesco, derivados de grotta (gruta), ficou durante muito tempo limitado ao conceito do
cômico, do burlesco, do mau gosto, ou ainda, a uma aproximação com o aberrante,
fabuloso, caricatural.
Estes termos italianos foram cunhados para designar determinado tipo de
ornamentação encontrada em escavações feitas em Roma, nos fins do século XV. O que se
descobriu foi uma espécie de ornamentação antiga, até então desconhecida, e por isso
mesmo sem designação específica. Nela, podia-se notar o jogo livre, insólito e fantástico de
formas que se confundiam, que se mesclavam e estavam em constante processo de
transformação, tudo estava em movimento e metamorfose.
No longo prefácio de Cromwell, que é a defesa do drama romântico, Victor Hugo
ressalta a importância do surgimento do Cristianismo para o despertar da nova sensibilidade
dos homens para sua condição de duplos, isto é, de seres repartidos em alma e corpo e
destinados a uma vida também dupla – uma passageira e terrena, outra eterna e celestial.
Esta percepção de duplicidade era impossível na Antiguidade, pois os antigos não
atingiam a espiritualidade do universo, mantendo-se sempre presos ao visível e palpável da
natureza. Assim, “a musa puramente épica dos Antigos havia somente estudado a natureza
sob uma única face, repelindo sem piedade da arte quase tudo o que, no mundo submetido à
sua imitação, não se referia a um certo tipo de belo” (HUGO, 2002, p. 26).
Apenas na modernidade, com a difusão do Cristianismo e seu jogo de duplos, a
poesia foi conduzida à verdade. “A musa moderna – afirma Hugo – verá mais coisas com
um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente belo,
que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do
sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz” (HUGO, 2002, p. 26).
Segundo o autor, o gênio moderno é resultado justamente da coexistência do
grotesco com o sublime, e desta junção surge uma infinidade complexa de formas e
possibilidades de criação artística, o que se opõe sensivelmente “à uniforme simplicidade
do gênio antigo” (HUGO, 2002, p. 28). De uma forma geral, o drama romântico – com o
seu componente grotesco coexistindo com o sublime – deveria caracterizar-se, enquanto
procedimento artístico, pela mistura de gêneros, só assim podendo realizar uma pintura
total da realidade como busca de uma poesia completa. É a busca desta poesia completa –
fruto da nova sensibilidade moderna e capaz de pintar a realidade como um todo complexo
– que motivou Victor Hugo a propor a destruição das teorias, das poéticas e dos sistemas.
O que se observa no conto de Lygia é uma espécie de rebaixamento do sublime
romântico. Se, para o romântico, o sublime é marcado por uma elevação do personagem, no
conto de Lygia a efabulação não parece convergir para nenhum tipo de resgate.
Assim como no universo kafkiano, no conto de Lygia o absurdo surge a priori. Não
há um preparo para o grotesco. Ele é descrito de um modo muito prosaico, frustrando no
leitor a expectativa de uma reação à altura por parte dos personagens.
Consideramos, portanto, que o grotesco em Lygia se aproxima bastante do universo
dos personagens kafkianos, fadados que estão a cumprir um pathos que jamais terá
desvelada a sua trama e, muito menos, o seu sentido moral.
No clássico “A Metamorfose”, de Kafka, observamos que as transformações
escapam da nossa percepção cotidiana e entram numa lógica do absurdo. Nada consegue
justificar a situação do protagonista Gregor Samsa. O enredo simplesmente começa assim.
A nenhum objetivo parece servir a sua condição de inseto asqueroso. Não se sabe sequer
por que a transformação se operou. Quer dizer, a narrativa não alcança nenhuma
justificação heróica ou trágica, mas resvala para um ponto qualquer, nota dissonante de
toda a realidade descrita, que, mesmo absurda, não é capaz de causar espanto nos
personagens.
Segundo Wolfgang Kayser,
Se pensarmos no cuidado com que Keller ou Hoffmann preparavam e
apresentavam os encontros com o abissal, os instantes de estranhamento do
mundo, torna-se ainda mais surpreendente a aplanação havida em Kafka. Nele,
não se dão “encontros”, irrupções repentinas, quaisquer estranhamentos
propriamente ditos, porquanto o mundo é estranho desde o começo. Não
perdemos o solo debaixo de nossos pés, porque nunca estivemos nele firmemente
postados; só que não o notamos de pronto. Para resumir o que ficou dito até aqui,
as narrativas de Kafka são grotescos latentes. (KAYSER, 2003, p. 126)
Em “Quem se chama solidão”, o grotesco se evidencia não só pela utilização dos
elementos do fantástico, mas, principalmente, pelo estabelecimento desta zona de
instabilidade, entre real e irreal, por esta falta de fundamento seguro em que se vê a
protagonista ao dar-se conta de sua condição solitária, e pelo grau de aceitação desta
arbitrariedade do mundo.
Como acontece na literatura kafkiana, a narrativa de Lygia vai desenredando aos
poucos os movimentos da consciência enquanto esta se mistura aos elementos do
esquecimento. Ambos autores imprimem um extremo poder ao onírico, de modo que “a
efetiva realidade é sempre irrealística” (op. cit, p. 125).
Segundo a ensaísta Sônia Régis, isto ocorre porque
ela escolheu trabalhar com um material difícil e escorregadio, pronto a escapar do
registro da memória para o esquecimento eterno: as névoas dos sonhos, as
sombras das fantasias, as fantasmáticas associações dos delírios, a aspereza dos
raciocínios, as bruscas mudanças dos sentimentos, o tumulto dos interesses
humanos, os estados alterados de consciência. (RÉGIS, 1998, p. 89)
No conto em questão, o enfrentamento da morte de Leocádia (a segunda pajem que
a mãe de menina recolhe depois da fuga de Maricota com o artista de circo) e, mais
especificamente, de seu espectro, é o ápice do entendimento da menina de sua condição de
ser solitário no mundo.
Nesta história de saudades e descobertas, é na ausência, isto é, na presença da
morte, da perda, que a narradora parece atingir o “grau de compreensão” do sentido da
vida, ao qual se referia Walter Benjamin. Segundo o filósofo, “nos enventos mortos do
passado eufemisticamente conhecidos como experiência” é possível encontrar o sentido da
vida. “Somente é possível entender o passado porque ele está morto” (BENJAMIN, 1996,
p. 214).
4.6 - Pomba Enamorada ou uma história de amor
Extremamente representativo do tema da solidão na obra de Lygia, o conto “Pomba
Enamorada ou uma história de amor” conta a história de uma paixão malograda. Narrando
a trajetória de uma mulher desprezada pelo amado, a autora mescla paixão (ou obsessão)
com ironia, autodestruição, ingenuidade, submissão, e a conseqüência de tudo isso, e por
que não dizer a própria causa, é a inevitável e mais perfeita solidão da protagonista.
Tudo começa no baile em que é coroada princesa do Baile da Primavera, “já que o
namorado da rainha tinha comprado todos os votos”, onde conhece Antenor, um sujeito
rude, que não “esquentava o rabo em nenhum emprego”, mas que lhe encanta desde o
primeiro momento, apesar, ou, quem sabe, por causa, de seu jeito grosseiro. Apesar da
fugacidade do encontro, de duração de uma valsa aproximadamente, a Valsa de Miosótis,
este momento marca para sempre a personagem. Não bastasse o melancólico ritmo desta
modalidade de dança, o título da valsa já nos insere numa atmosfera de despedida: o
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