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III. Revisão da Literatura
1 - As ganhadeiras: o surgimento das baianas de acarajé na Bahia
No século XIX, as relações escravistas na cidade do Salvador eram
caracterizadas pelo sistema de ganho. As escravas ganhadeiras eram
mulheres, negras, que ocuparam, naquela época, lugar destacado no mercado
de trabalho urbano. Poderiam ser encontradas escravas, colocadas nas ruas
pelos seus proprietários ou mulheres libertas que lutavam para garantir o
sustento de sua família (IPHAN. MINC. MINC, 2004).
As ganhadeiras escravas eram obrigadas a dar aos seus senhores uma
quantia previamente estabelecida, a depender de um contrato acertado entre
as partes. Caso houvesse excedente, esta trabalhadora poderia juntá-lo para
pagar a alforria dela e do marido ou gastá-lo no seu dia-a-dia. Porém, muitas
vezes, os lucros da venda que lhe sobravam eram poucos, trazendo maiores
dificuldades para guardar o dinheiro. Apesar disso, o ganho era uma das
principais portas para a alforria (SOARES, 1996).
Tal prática de comércio ambulante de alimentos já era realizada na costa
Ocidental da África como forma de autonomia das mulheres em relação aos
homens, o que, com freqüência, lhes conferia o papel de provedoras de suas
famílias.
Os principais itens vendidos pelas ganhadeiras eram os gêneros de
primeira necessidade, em sua maioria, alimentícios, como hortaliças, verduras,
peixes, frutas, comidas pronta (caruru, vatapá, mingau, acarajé, bobó); em
segundo plano, tecidos e miudezas.
Os tabuleiros poderiam ser fixos em pontos estratégicos das ruas (áreas
mais movimentadas como a praça do Comércio e o Cais Dourado, em
Salvador), mas, em sua maioria, eram carregados na cabeça (HASBURGO,
1982). Este ato de equilibrar o tabuleiro na cabeça ajudava a tornar o corpo
ereto, deixando as mãos livres para o trabalho (Wetherell apud SOARES,
1996).
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O mesmo autor afirma que as ganhadeiras se vestiam dos mesmos
trajes, de variadas cores, colorindo o cenário urbano. Algumas levavam seus
filhos junto a elas, indicando que estas mulheres trabalhavam sozinhas pela
sobrevivência.
Atualmente, a ida das crianças ao local do trabalho pode evidenciar a
manutenção da tradição ao propiciar as mesmas um momento para o
aprendizado do ofício, mesmo que nas tarefas menos especializadas.
Estas mulheres equilibravam em suas cabeças tabuleiros, gamelas e
cestas, ocupando ruas e esquinas das cidades dedicadas ao mercado público
e feiras livres, onde vendiam quase tudo (SOARES, 1996). Porém era à noite,
a partir das 19 horas, que as famílias esperavam as ganhadeiras passarem,
numa espécie de cerimônia, em que sua voz era aguda e alta anunciando a
sua chegada: “Iê acarajé, iê abará” ou ainda “acará, acará ajé, acarajé”
(IPHAN. MINC, 2004)
Segundo Mott (1976), o comércio permaneceu por muito tempo a única
atividade aberta às mulheres livres na sociedade escravista. Porém, devido a
presença expressiva, o Estado passou a estipular critérios que limitavam a
liberdade de movimento das negras vendedeiras, como pagamento de licença
ao Estado, fiscalização da qualidade dos alimentos, entre outros. No entanto,
Figura1: Ganho de comida. Século XIX
Fonte: IPHAN, 2004
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mais tarde, após muita luta e resistência, estas mulheres puderam voltar a
comercializar seus produtos sem maiores dificuldades (SOARES, 2007).
Mesmo depois do período escravocrata e até os dias atuais, com
finalidade religiosa ou comercial, a venda de acarajé permite que as mulheres
aprendam uma profissão que ainda sustenta grande parcela da população
soteropolitana, e que assumam múltiplas jornadas
como chefe de família,
mãe
e devota religiosa (CANTARINO, 2005).
Segundo Ferreira Filho (2003), Salvador era uma cidade de mulheres
guerreiras e resistentes apesar destas não o reconhecerem e, constantemente,
esperarem um salvador.
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