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Ninguém sabia. Entretanto, Maria do Carmo ajoelhada hirta, com o queixo
enterrado entre as clavículas, tinha uma imobilidade aterradora no olhar.
— Credo! gritou Amância, benzendo-se.
As sobrinhas puseram-se logo a chorar ruidosamente; Ana Rosa Eufrásia e
Lindoca imitaram-nas no mesmo instante.
Correram
todos para o lugar sinistro; os músicos com os instrumentos debaixo
do braço; Lamparinas com o manual de rezas marcado pelo indicador da mão
direita.
Ouvia-se roncar estranhamente o ventre de Maria do Carmo. Raimundo abriu
caminho, chegou onde ela estava, suspendeu-lhe a cabeça e, ao soltá-la de novo,
uma golfada de vômito podre jorrou pelo corpo da velha.
— E um vólvulo! disse ele, voltando a cabeça.
— Do latim —
volvulus — segredou-lhe o Freitas, que o acompanhara até lá.
Maria do Carmo foi carregada para o quarto. Estenderam-na em uma
marquesa. Pingava-lhe de todo o corpo um suor copioso e frio; tinha o ventre duro
como pedra. Raimundo fez darem-lhe azeite doce e aconselhou que mandassem
comprar,
quanto antes, eletuário de sena. Correu-se a chamar o médico na cidade.
A doente voltou a si, mas sentia cólicas horríveis, comichão por todo o corpo;
queixava-se de grande secura, e delirava de instante a instante. Daí a meia hora
vieram de novo os vômitos; cresceram-lhe as agonias; aumentavam-lhe os rebates
intestinais. A pobre velha arranhava a palhinha da marquesa, cravando as unhas na
madeira.
Em tomo dela fazia-se um silêncio aterrador. Afinal chegou-lhe a reação: deu
um arranco dos pés à cabeça e ficou logo imóvel.
Raimundo
pediu um espelho; colocou-o defronte da boca de Maria do Carmo,
observou-o depois e disse secamente:
— Está morta.
Foi um berreiro gera,. Etelvina caiu para trás, estrebuchando num histérico;
Manuel arredou a filha daquele lugar Acudiram todos os de casa Os ânimos que o
vinho entorpecia, acordaram como por encanto. A situação incontinente tornou-se
lúgubre.
O Cordeiro, já em seu juízo perfeito, ajudou a carregar o cadáver, afastou
cadeiras, arrastou uma cômoda, e preparou a encenação da morte. Invadiram o
quarto. Os pretos do sítio chegavam-se
com medo apavorados, resmungando
monossílabos guturais; o olhar parvo, a boca aberta.
Em menos de duas horas, Maria do Carmo estava estendida em um canapé,
iluminada por velas de cera, lavada, vestida de novo e penteada Sobre a cômoda,
perto dela, a inalterável imagem de São João Batista, e, ajoelhado no tijolo, com o
olhar fito no santo, o cônego, de braços abertos, balbuciava uma oração.
Manuel expediu recados para a cidade;
seus caixeiros partiram todos; Maria
Bárbara fechara-se no quarto e pusera-se a rezar com desespero de beata velha. A
agitação era comum. Só Amância conservava o sangue-frio; estava no seu elemento
- ia e vinha, deva ordens, dispunha tudo, aconselhava, ralhava, chorando quando
era preciso, consolando os desanimados,
dizendo rezas, citando fatos, governado,
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repreendendo aos que não obedeciam, e pondo ela mesma em prática as suas
prescrições.
As dez horas da noite, uma rede de algodão, enfiada numa taboca de muitas
cores, cujas extremidades dois pretos vigorosos sustentavam no ombro, conduzia o
cadáver de Maria do Carmo para o sobrado do Largo das Mercês,
com grande
acompanhamento de homens e mulheres. Benedito ia na frente, iluminando o
fúnebre cortejo à luz ruiva de um enorme archote alcatroado que ele erguia sobre a
cabeça.
Lamparinas caminhava atrás furioso, fazendo voar ante seus pés as
pedrinhas soltas da estrada, e dando-se aos diabos pela má observância do antigo e
confortador provérbio: “O padre onde canta lá janta!”
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