19
Um traço marcante dessa atitude de inconformidade com propostas de trabalho que
lembrassem as condições da época da escravidão foi a grande mobilidade das famílias de
origem africana no final do século XIX e início do século XX - em outro exame sobre as
memórias passadas pelos últimos libertos aos seus filhos e netos, Ana Rios e Hebe Mattos
identificaram esse traço como a “maldição da mobilidade”.
21
O esforço para conseguir
trabalhar “sobre si” e a penúria experimentada nas fazendas (salários baixos, péssimas
condições de trabalho, saúde e habitação) arrastava muitas famílias em peregrinação de
acordo com as safras, condições econômicas ou a simples promessa de uma oportunidade de
trabalho digna ouvida de um conhecido ou um viajante de passagem.
Além disso, existia sempre a vaga possibilidade de conseguir um pedaço de terra
para viver e trabalhar sem depender dos contratos e do arrendamento das propriedades dos
fazendeiros. Se para Warren Dean “a abolição e a reforma agrária tenham sido ligadas por uns
poucos abolicionistas”
22
e nunca tenha sido um tema central da campanha pelo fim da
escravidão, os ex-escravos não deixaram de esperar ansiosamente pela oportunidade de
receber ao menos uma parte da terra onde trabalharam durante tanto tempo. Tal oportunidade
foi se tornando cada vez mais longínqua com a crescente demonização da mão-de-obra de
origem africana, tachada de preguiçosa, sem ambição e com “um juízo exagerado do próprio
valor”.
23
O fim do Império visto como redentor que se bateu para redimir a raça negra no
Brasil, o advento da República oligárquica e o início da densa imigração européia no começo
do século XX anunciou um horizonte ainda mais carregado para os descendentes de escravos
do Brasil. Muitos deles voltaram suas esperanças para as grandes cidades.
Ao delimitar as formas com que herança da abolição foi tratada ao longo das
primeiras décadas de regime republicano, é interessante tentar identificar o que a ordem
liberal abraçada pela República, e que acertou em cheio as populações de origem africana do
Brasil com seus pressupostos científico-raciais, suas políticas de exclusão e seu aparato
judicial inicialmente esperava dos cidadãos libertos do cativeiro.
Ao analisar o programa de emancipação britânico na Jamaica na segunda metade do
século XIX, Thomas C. Holt identifica todo um conjunto de idéias a respeito da transição do
trabalho escravo para o trabalho livre tecido pelas autoridades do Reino Unido, apontando que
os responsáveis pela condução daquele processo tinham grandes expectativas de que
21
RIOS, Ana Maria Lugão; MATTOS, Hebe Maria. O pós-abolição como problema histórico: balanços e
perspectivas.In:
Revista Topoi. Rio de Janeiro: UFRJ: vol. 5, nº 8, pp. 170-198, 2004. p. 181.
22
DEAN, 1977, p. 147.
23
Idem, p. 149.
20
permanecendo nas plantations e aceitando as condições de salário dos fazendeiros ingleses,
“seu trabalho [dos libertos] seria motivado pelo refinamento de seu gosto e pela expansão de
seu desejo de possuir bens materiais”.
24
Na fala dos administradores coloniais, os ex-escravos
deveriam desenvolver a partir do trabalho diligente toda uma disciplina burguesa de padrões
de consumo, esferas sexuadas de atividade doméstica e deferência à devida autoridade.
Ignorando tanto as especificidades culturais dos jamaicanos quanto a herança que
trouxeram dos anos do cativeiro, foi grande a frustração dos ingleses ao constatar que aqueles
tinham pouco interesse nos alegados benefícios que a liberdade vitoriana lhes dispunha, e
como resultado, uma rápida virada no pensamento colonial britânico levou a uma
desqualificação da mão-de-obra de origem africana da ilha, com a disseminação do
estereótipo do quashee: o jamaicano “preguiçoso, moralmente degenerado, licencioso e sem
preocupações do futuro”.
25
É impossível fazer uma comparação entre a Jamaica da metade do século XIX e o
Brasil de fins do mesmo século, principalmente porque a preocupação com o aspecto social da
população egressa da escravidão raramente fez parte do discurso das elites republicanas antes
da década de 1920, e mesmo alguns próceres do abolicionismo, apesar de se mostrarem
confiantes na capacidade dos afro-brasileiros de contribuir substancialmente para o progresso
econômico do país, não deixavam de transparecer algumas das idéias sobre raça e
miscigenação que iriam amadurecer dali a poucos anos. Sobre Joaquim Nabuco, Thomas
Skidmore pontua que este
[...] não deixava dúvidas de que seu alvo era um Brasil mais branco. Era
suficientemente honesto para dizer que, se tivesse vivido no sec. XVI, ter-se-
ia oposto à introdução de escravos africanos, da mesma maneira como se
opunha agora ao plano da “escravatura asiática” – a proposta de importar
trabalhadores chineses para substituir os escravos. Na sua opinião era uma
lástima que os holandeses não tivessem permanecido no Brasil pelas alturas
do século XVII.
26
Ao mesmo tempo, seu contemporâneo José do Patrocínio já mencionava algumas
idéias que iriam fazer parte do pensamento racial do século que se aproximava, como a
natural aptidão do povo brasileiro de conduzir a miscigenação e fundir todas as raças numa
24
HOLT, Thomas C. A essência do contrato. In: COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca J.
Compartilhe com seus amigos: