13
2. Escravidão, abolição e cidadania: 1888-1930.
Embora o estudo da escravidão - e da sua importância como elemento de profunda
influência no desenvolvimento social, econômico e político do Brasil – seja talvez o campo de
mais profícua produção bibliográfica e mais caloroso debate acadêmico na historiografia
contemporânea do país, a preocupação com análises especialmente centradas nas
conseqüências de longo prazo do processo emancipacionista e nas transformações sociais
experimentadas pelas populações de origem africana ao longo dos mais de cem anos desde a
abolição do regime escravocrata é atitude “relativamente recente” entre os historiadores
brasileiros.
2
Apesar de ser possível observar com muita clareza uma intensa produção intelectual
que floresceu nas primeiras décadas após a abolição, e que tinha como principal preocupação
a influência da “raça” no passado e nos destinos do Brasil, a herança da escravidão levou
muitos anos até deixar de ser tratada sob uma ótica cientificista por uma elite intelectual assaz
desejosa de ajustar teorias e conceitos oriundos da Europa ao estudo da sociedade brasileira e
começar a ser problematizada com maior rigor metodológico pelas diversas disciplinas de
ciências humanas, num processo que de certa forma foi análogo ao desenvolvimento das
grandes instituições de ensino superior no país ao longo da primeira metade do século XX.
Isso, no entanto, não quer dizer que os primeiro cinqüenta anos após o treze de maio
de 1888 sejam forçosamente rotulados como minguados de reflexões objetivas sobre o
passado escravista do Brasil. Pelo contrário, esse período fornece um rico panorama de como
não apenas as classes políticas e os intelectuais e homens de letras, mas também as
populações urbanas e rurais de origem africana do país lidaram com um sem-número de
problemas que afloraram a partir do momento em que sua condição jurídica, suas relações de
trabalho, sua economia e sociedade foram radicalmente transformadas com a extinção da
escravidão.
É essencial, portanto, delimitar as principais experiências históricas vividas entre a
abolição e os primeiros anos de existência do regime republicano no Brasil, no campo das
idéias, do debate político e na vivência coletiva e individual dos cidadãos que estiveram no
centro deste período histórico (grosso modo entre o ano de 1888 e a segunda metade da
década de 1930), a fim de entender a que ponto as concepções e idéias acerca da experiência
2
RIOS, Ana Maria Lugão; MATTOS, Hebe Maria. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no
pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 17
14
da escravidão foram se modificando até culminar com as comemorações do cinqüentenário da
abolição, em pleno Estado Novo, no ano de 1938.
Retornando à década de 1880, que sob todos os aspectos viu o definhamento e
colapso final da instituição da escravidão no Brasil, é possível apontar uma miríade de
disputas e embates que definiriam o tom não apenas da campanha abolicionista da época, mas
que continham em si a semente de futuras cisões e rupturas que iriam surtir pesada influência
no futuro do país.
Tais embates não se limitaram às tribunas onde os intelectuais abolicionistas
defendiam sua causa em inflamados discursos, como fez crer a memória que a historiografia
do início do século XX fixou do abolicionismo como um movimento de pessoas com
ilustração superior como Rui Barbosa, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco, defendendo os
escravos de uma instituição degradante e antinatural. Ao contrário, as grandes convulsões
foram vivenciadas pelos escravos e ex-escravos nos seus espaços de vivência e trabalho, no
meio urbano e rural. Aqueles abolicionistas, seguidores do movimento iniciado por Nabuco
em 1880 com a criação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão, tinham uma idéia bem
definida de como deveria ser conduzida a luta política pela extinção do cativeiro. Suas
concepções apontavam que
[...] o movimento deveria se restringir ao âmbito das elites e das camadas
médias urbanas, na busca de uma solução pacífica, deliberada no interior da
comunidade de cidadãos, entre os homens livres, em suma, de modo a não
trazer transtornos à ordem social.
3
Essas lideranças, além disso, “reprovaram os grupos dissidentes que levaram a
questão às senzalas, promovendo fugas e levantes”,
4
exibindo uma preocupação de que a luta
pela abolição acabasse extrapolando os limites do debate político organizado, travado no
âmbito das tribunas legislativas e dos comícios e pelos representantes letrados da sociedade
brasileira, e começasse a ser encampado pelos próprios escravos, cujo sentimento de revolta
com sua condição poderia acabar causando a sempre temida convulsão da “ordem social”.
Tais preocupações revelaram-se não apenas reais, mas amplamente visíveis ao se
levar em consideração o quadro da sociedade brasileira nas regiões que, apesar da lei de 1871
e das legislações da década de 1880, ainda apresentavam uma grande concentração de cativos,
como o Recôncavo Baiano, o Vale do Paraíba e as grandes lavouras de café do oeste paulista.
3
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil 1870-1914. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 133.
4
Idem, p. 133.
15
Ao investigar as últimas décadas da escravidão no Recôncavo, Walter Fraga Filho
apresenta um painel das profundas tensões entre a população cativa da região e os senhores de
engenho, tensões essas que freqüentemente desaguavam em revoltas e crimes que exigiam a
intermediação da justiça.
5
O Recôncavo Baiano de fins da década de 1880 apresentava uma mistura perigosa:
de um lado, escassez de mão-de-obra escrava, diminuição da produção açucareira, e senhores
de engenho extremamente relutantes em perder seu controle sobre os escravos restantes. Do
outro, uma população de cativos pouco dispostos a sofrer passivamente punições ou castigos
físicos nas mãos dos senhores e cada vez mais imbuídos de suas próprias concepções sobre
trabalho e igualdade, amparados por tribunais de justiça que tendiam a arbitrar as disputas por
alforrias em favor dos escravos, refletindo o sentimento comum de repulsa à escravidão das
classes médias urbanas da Bahia – sentimento esse fortemente reproduzido pela imprensa.
O resultado foi a intensificação de fugas das fazendas e de episódios de violência
contra senhores e feitores, além uma participação ativa dos escravos remanescentes no
Recôncavo na diminuição da produção dos engenhos, através da sua recusa em extrapolar
aquilo que julgavam ser uma jornada de trabalho justa, diminuindo de forma proposital o
ritmo de trabalho e exigindo espaço e tempo para cultivar suas próprias terras.
Mais do que esse protagonismo dos escravos baianos na construção da sua liberdade,
os anos de 1887 e 1888 viram o surgimento de uma onda de “abolicionistas de última hora”,
quando em vista do já acentuado êxodo dos cativos e da radicalização do movimento
abolicionista, uma grande quantidade de senhores se puseram a alforriar os seus já minguados
plantéis num esforço de tomar para si as rédeas de um processo que naquela altura já se
mostrava inevitável:
No final de 1887, os senhores começaram a conceder alforrias coletivas sob
condição ou gratuitas. Os jornais deram grande publicidade a esses atos
como prova de desprendimento e de espírito humanitário. Na verdade, era
uma forma de antecipar-se à decisão do Império de abolir o cativeiro. Era
também um meio de conter a crescente insatisfação da população cativa e
evitar distúrbios na produção. A “emancipação concedida” no apagar das
luzes do cativeiro foi uma tentativa de arrancar o respeito e a “perene
gratidão” dos antigos escravos.
6
No sudeste do país, um processo bastante parecido se desenvolvia nas fazendas de
café de São Paulo, cujos fazendeiros relutavam em serem alijados da sua força de trabalho
tanto quanto os senhores de engenho baianos.
5
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910).
Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
6
Idem, p. 113.
16
Em seu estudo sobre a grande lavoura em Rio Claro, Warren Dean apresenta o
mesmo quadro de fugas, dando conta de que entre junho de 1885 e março de 1887 (um
período de 21 meses) 471 escravos deixaram de constar nos registros da região,
7
representando uma média de mais de cinco fugas por semana no referido período. Aliados a
isso também estavam presentes os conflitos judiciais por alforrias e a resistência ao trabalho,
sendo que este último fator nos últimos meses de 1887 havia de fato chegado à proporção de
uma “revolta geral”.
8
Diante dessa situação – decerto bastante aterradora do seu ponto de vista - os
fazendeiros de café procuravam desesperadamente conter a emancipação dentro dos limites de
suas próprias esferas de influência, desde a oferta de alforrias a termo até a libertação de
plantéis inteiros, sempre procurando neste caso dar a devida publicidade nos jornais locais,
mandando publicar matérias e editoriais em tons triunfalistas.
Esse ambiente de completa desorganização no mundo rural e de tentativas dos
senhores de conquistar a gratidão dos escravos concedendo a liberdade que já era
praticamente um fato consumado e procurando enredá-los novamente na teia do
patriarcalismo foi um traço definidor tanto do momento da abolição quanto da memória que
iria se formar posteriormente sobre a luta que levou à extinção da escravidão. Tocando no
ponto específico da província de São Paulo, George Andrews assinala que
Embora os fazendeiros pudessem tentar reivindicar os créditos da abolição,
os observadores contemporâneos e posteriores reconheciam-na como “uma
vitória do povo – poderíamos acrescentar – uma conquista dos negros livres
e escravos”. Pela primeira vez na história brasileira, um movimento de
massa triunfou sobre os interesses oligárquicos.
9
Por todo país, os recém alforriados, a população de libertos e seus descendentes, os
integrantes do movimento abolicionista e o restante da sociedade rejubilava-se, tomando as
ruas em vibrante agitação. O povo em geral e os ex-escravos encontravam-se num estado de
tremendo entusiasmo e os jornais destacavam o caráter eminentemente popular não apenas
das comemorações de momento, mas também do próprio movimento em prol da abolição. Na
Bahia, as manifestações “impressionaram os observadores da época, pela quantidade de
pessoas que ocuparam a rua”.
10
Em diversas localidades, as festas chegaram a durar muitos
dias, incluindo romarias a sítios de devoção dos antigos escravos, passeatas dos clubes
7
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1977. p. 140.
8
Idem, p. 141.
9
ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru: EDUSC, 1998. p. 75.
10
FRAGA FILHO, 2006, p. 126.
17
abolicionistas, fogos de artifícios, sambas organizados nos terreiros dos recém-libertos e
demonstrações efusivas de gratidão e afeto dirigidos ao Império, em especial à Princesa
Isabel, que logo passou a receber a alcunha de “redentora”.
Por outro lado, outros contemporâneos do primeiro dia treze revelavam grande receio
em relação às comemorações e aos significados que a festa poderia tomar no futuro: a súbita
afluência às ruas de uma multidão de milhares de pessoas, cuja grande maioria experimentava
a vida sem quaisquer impedimentos pela primeira vez era vista por muitos como algo
temerário e que anunciava “funestas conseqüências”.
11
Para aqueles que haviam acabado de alcançar sua liberdade, bem como aqueles que
já a experimentavam há mais tempo e que tomaram as ruas do país para comemorar a Lei
Áurea – e em especial para seus filhos e netos que mais tarde iriam experimentar diretamente
as conseqüências do fim do cativeiro - o fruto daquela atmosfera dos últimos anos da
escravidão foi o desenvolvimento de uma concepção muito particular do que significava a
liberdade. Os anos de escravidão incutiram nas gerações de cativos da segunda metade do
século XIX um profundo sentimento de repulsa em relação a ameaças, castigos físicos,
execução de trabalhos considerados degradantes e – acima de tudo – à contingência de não
poderem regular quando e como iriam trabalhar. Tal sentimento se traduziu em alguns
padrões de conduta que a partir de treze de maio de 1888 levariam os ex-senhores de escravos
por todo o Brasil a ficar genuinamente surpresos.
Em entrevistas realizadas com netos e bisnetos de escravos do Vale do Paraíba
fluminense e mineiro, a abolição aparece nas memórias dos descendentes da última geração
de cativos como “um divisor de águas, verdadeiro recurso de periodização e um marco entre
dois tempos: o do cativeiro e da liberdade”.
12
Longe de serem construções fortuitas, essas
lembranças passadas de geração em geração há mais de cem anos traduzem de maneira
bastante aproximada o que representou a lei de treze de maio não somente para os últimos
escravos, mas também para a toda população de origem africana que já não se via mais eivada
pela marca da escravidão.
Na outra ponta das antigas relações, a abolição despertou nos ex-senhores
sentimentos que iam desde o rejúbilo oportunista por terem com suas alforrias em massa
“antecipado o inevitável e terminado com a escravidão”,
13
até a mais profunda desilusão ao
11
FRAGA FILHO, 2006, p. 126.
12
RIOS; MATTOS, 2005, p. 44.
13
ANDREWS, 1998, p. 73.
18
constatar que todo um mundo de tradições, calcado na obediência e gratidão da força de
trabalho das fazendas havia ruído. No Recôncavo, “houve quem deixasse de achar sentido na
vida, a se ver privado dos serviços dos antigos cativos”,
14
enquanto que na zona rural do
estado do Rio, a memória dos descendentes de escravos registra um fazendeiro transtornado
que se pôs a chorar após transmitir a notícia a seus escravos que dali em diante eram livres.
15
No entanto, o sentimento geral parecia oscilar entre a surpresa e o ceticismo, como
aponta Walter Fraga no caso exemplar da Bahia, onde muitos dos senhores de engenho se
viram absolutamente perplexos como o novo padrão de conduta dos libertos e suas recém-
adquiridas atitudes e linguagem que feriam de forma contundente regras de comportamento e
deferência que de tão antigas, pareciam incapazes de deixar de existir:
Em diversos engenhos, os ex-escravos negaram-se a receber a ração diária, a
seguir para o trabalho no canavial e a trabalhar sem remuneração. Ao
afirmarem o status de livres, muitos passaram a expressar-se numa
linguagem que os ex-senhores consideraram “atrevida” e “insolente”.
Naqueles dias, palavras e atos facilmente ultrapassaram os limites do que os
ex-senhores entendiam como etiquetas de respeito de deferência. Poucos
senhores não guardaram daqueles momentos amargas recordações da
maneira como seus cativos passaram a se comportar.
16
Nas fazendas de café do Rio de Janeiro, ex-senhores e administradores das fazendas
de café se mostravam “profundamente despreparados”
17
para negociar coletivamente com os
ex-cativos que recusavam as propostas de parceria, os valores do salário e o ritmo de trabalho
propostos. Isso se dava porque, de forma geral, tanto nas zonas rurais de grande lavoura de
café no sudeste quanto de açúcar no nordeste, o trabalhador egresso da escravidão se tornara
“excessivamente exigente e sempre pronto a rechaçar condições de trabalho que lembrassem a
escravidão”.
18
No Recôncavo, um fazendeiro reclamava das “cabeças exaltadas”
19
dos
libertos, pela dificuldade de firmar acordos de trabalho com os mesmos. Nessas
circunstâncias, muitos deles – juntamente com suas famílias - abandonaram ostensivamente
os engenhos de açúcar do Recôncavo sem dar satisfação aos administradores, prática que em
anos posteriores foi identificada como forma de pressionar por melhores salários.
20
14
FRAGA FILHO, 2006, p. 132
15
RIOS; MATTOS, 2005: 214.
16
FRAGA FILHO, op. cit., p. 129.
17
RIOS, Ana Maria Lugão; MATTOS, Hebe Maria. Para além das senzalas: campesinato, política e trabalho
rural no Rio de Janeiro pós-Abolição. In: CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES, Flávio dos Santos (Org.).
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