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1. Introdução.
Apesar de a escravidão, suas transformações e sua extinção na segunda metade do
século XIX serem dos assuntos mais diletos da historiografia brasileira, seus desdobramentos
e conseqüências naquele final de século, ou nos cinqüenta ou cem anos que se seguiram, não
desfrutam do mesmo prestígio dentro da disciplina histórica. A preocupação com o legado e a
influência da escravidão na sociedade brasileira do século XX é geralmente creditada a
pesquisas com enfoque na sociologia e antropologia cultural, disciplinas para as quais
entender a etiologia dos lugares sociais ocupado pelos brasileiros de origem africana e mestiça
é de grande importância para tentar esclarecer alguns dos grandes problemas do Brasil
contemporâneo.
O presente trabalho procura partir da importância do processo abolicionista brasileiro
para tentar refletir o lugar que ele passou a ocupar na memória nacional nos anos seguintes,
usando como janela as comemorações do cinqüentenário da lei áurea em 1938 e tendo como
objetivo final realizar uma aproximação entre dois momentos distintos da história nacional
que a princípio podem parecer desconexos, mas que através da leitura crítica e interpretação
de fontes característica da pesquisa histórica revelam possuir vínculos muitos particulares.
De fato, para além da distância de meio século que os separam, suficientemente
pequena para que os contemporâneos da abolição ainda estivessem vivos para relembrá-la de
maneira vívida, e suficientemente grande para que as inevitáveis apropriações e reconstruções
da memória já tivessem realizado seu processo característico de ressignificação do passado, os
anos de 1888 e 1938 são particularmente importantes por se situarem imediatamente antes e
imediatamente depois de grandes eventos da história nacional que ensejavam a construção de
mitos políticos que dessem conta de sustentar suas diferentes concepções de história e
sociedade.
Ambas as datas também se situam entre momentos em que a participação popular
havia sido decisiva no encaminhamento dos eventos, embora de maneiras distintas. Se durante
os últimos anos da década de 1880 a mobilização dos escravos e das camadas médias logrou
triunfar sobre os interesses dos proprietários e da classe política conservadora precipitando o
fim do trabalho escravo, o momento imediatamente posterior, em que se dissolveu a
instituição monárquica e em que se instaurou o regime republicano foi de procurar esvaziar o
sentido daquela luta. De fato, como aponta Renata Figueiredo Moraes em trabalho sobre os
usos do passado na construção dos símbolos e heróis no maio de 1888, os próprios
contemporâneos daquele ano pareciam imbuídos de um sentimento de que, finda aquela fase
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turbulenta da história nacional, “todo o passado deveria ser passado”,
1
sentimento que as
elites republicanas iriam levar ao extremo após derrubarem o regime monárquico, ao procurar
insistentemente sepultar as idéias de pressão e participação popular que a campanha
abolicionista na sua fase radical parecia sugerir, fechando com seus argumentos do racismo
científico dirigidos contra a imensa população de origem africana e mestiça do país o círculo
de uma república liberal e excludente.
Já os anos de 1930 representaram um ponto de inflexão fundamental na história do
Brasil do século XX. Se durante as primeiras quatro décadas do regime republicano o povo
das ruas somente lograva romper as barreiras do cenário político na forma de sublevações e
revoltas dirigidas contra o projeto civilizador da República Velha, as profundas
transformações advindas com a tomada do poder por Getúlio Vargas pareciam prometer pela
primeira vez a inclusão da classe trabalhadora no jogo político nacional, e a primeira fase da
chamada “era Vargas”, analisada neste trabalho sob o ponto de vista das organizações negras
do estado de São Paulo, mostrou-se um período de admirável agitação política e intelectual,
onde os mais diversos setores da sociedade brasileira procuraram reivindicar seus espaços e
fazer valer a sua importância. Mais do que isso, a década de 1930 até o momento da
instauração da ditadura do Estado Novo foi um período onde se procurou redefinir o que era o
Brasil e quem eram os brasileiros, e embora a partir de 1937 esse esforço de construção da
identidade nacional tenha se tornado prerrogativa do governo autoritário e centralizador
comandado pelo presidente Vargas, as idéias instigadas por aquele período tão efervescentes
continuaram vivas e influenciando a sociedade brasileira nos anos seguintes.
Seria neste ambiente da política simultaneamente conciliatória e autoritária do
Estado Novo que se passaria o cinqüentenário da abolição, embora se devam fazer ressalvas
no sentido do perigo de se padecer de anacronismo ao analisar as comemorações utilizando a
perspectiva do regime que havia sido instaurado havia poucos meses. De fato, o que se
procurará investigar é em que medida a memória da campanha abolicionista ainda carregava
as idéias que haviam se enraizado nos primeiros anos do regime republicano, resultado de
uma batalha pela memória daqueles acontecimentos que começou a ser travada imediatamente
após sua conclusão. A imagem do abolicionismo brasileiro naquele ano de 1938 seria
tributária tanto dos esforços da intelectualidade conservadora da República Velha quanto do
1
MORAES, Renata Figueiredo. A abolição da escravidão: história, memória e usos do passado na construção de
símbolos e heróis no maio de 1888. In: SOIHET, Rachel
et al.
Mitos, projetos e práticas políticas: memória e
historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. pp 97-98.
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ambiente político e intelectual da década de 1930, tornando-se essencial compreender ambos
os contextos do ponto de vista das discussões sobre raça e cidadania que vinham sendo
desenvolvidas nos últimos cinqüenta anos.
Por fim, o cinqüentenário da abolição será analisado pela perspectiva do estado de
Santa Catarina, sob a ótica da sua imprensa e aquela que na década de 1930 seria a sua
principal instituição de pesquisa, coleta e sistematização do conhecimento histórico, o
Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, utilizando também o ambiente do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro para contrapor visões e esboçar um panorama mais amplo
das imagens e representações da escravidão e do abolicionismo brasileiro, cinqüenta anos
depois da lei Áurea. A opção pela abordagem dos institutos históricos se justifica por terem
sido eles os principais agentes de produção e sistematização da história pátria entre o final da
monarquia e a década de trinta.
O ponto de vista de um estado que em fins da década de 1930 se apresentava como
muito mais branco em comparação com o resto do Brasil, onde a imigração européia logrou
transformar profundamente o panorama demográfico da sociedade, e onde a escravidão era
vista como de pouca importância no desenvolvimento econômico da região é extremamente
valioso no sentido de dimensionar a forma com que a memória da instituição escravista e da
sua extinção no ano de 1888 foi tratada por aqueles que nos cinqüenta anos anteriores
produziram e divulgaram o conhecimento histórico.
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