Progresso em 1929, ficavam bem longe do fraternal.
72
Embora, conforme aponta Siegel, a disseminação dessa “ideologia da fraternidade”
pudesse funcionar como um obstáculo a impedir que a hierarquia social vigente no país fosse
seriamente questionada, os escritores afro-brasileiros que militavam na vicejante imprensa
negra da época enxergavam na idéia um meio oportuno de fazer valer suas reivindicações de
cidadania.
O ponto alto da ebulição política em torno da exaltação dos valores e da
reivindicação do avanço econômico, moral e intelectual da gente negra do país seria o ano de
71
ANDREWS, 1998, p. 227.
72
SIEGEL, Micol. Mães pretas, filhos cidadãos. In: CUNHA; GOMES (Org.), 2007. p. 325.
39
1931, quando foi fundada em São Paulo a Frente Negra Brasileira, fruto de uma convergência
das aspirações de intelectuais e jornalistas que vinham militando em periódicos da imprensa
negra como o Progresso e o Clarim d’Alvorada e propondo a organização de instituições que
apoiassem as causas sociais dos afro-brasileiros, como o Centro Cívico Palmares e o
Congresso dos Homens de Cor. Seus arquitetos e edificadores eram, sob todos os aspectos,
pertencentes ao que se poderia denominar de “elite negra”: a pequena parcela da população de
origem africana do Brasil que além de letrada era também ilustrada, como os jovens
jornalistas José Correia Leite, Gervásio de Moares e Jaime de Aguiar, e a parcela menor ainda
dos que, logrando romper barreiras sociais ainda mais rígidas, haviam conquistado um
diploma acadêmico, como o dentista Francisco Lucrécio, o bacharel em direito Raul Joviano
do Amaral e o filósofo e professor Arlindo Veiga dos Santos.
Surgida num momento de grave crise econômica e agitação política, a FNB
rapidamente angariou milhares de seguidores: embora sua base fosse centrada em São Paulo e
Santos, foram abertas filiais na Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A
razão para tamanha adesão à causa da gente negra do Brasil, segundo Flávio Gomes foi que
para a população negra, “costumeiros períodos de dificuldades estavam então mais do nunca
acompanhados de expectativas de mudanças”.
73
Não seria exagero afirmar que da mesma
forma que o 1889 despertou grandes esperanças nos libertos em relação ao seu futuro dentro
da nova sociedade que se prometia igualitária, o 1930 também se revelou como um momento
emblemático, quando
Juntamente com os trabalhadores brancos e com a classe média branca, os
negros clamaram para ser incluídos na participação política mais ampla que
aquela revolução parecia pressagiar. Uma reportagem de um dos principais
jornais negros sobre os encontros de organização da Frente comentou sobre a
atmosfera palpável de esperança e expectativa. “A reunião de ontem à noite
foi realmente notável, tanto sob o ponto de vista de assistência, que foi
vultosíssima, quanto pelos discursos oferecidos... Sente-se visivelmente uma
consciência nacional despertando entre os negros brasileiros, impelindo-os a
uma participação mais direta na vida social a política do país...”.
74
Contando com diversos departamentos como instrução e cultura, musical, médico, de
imprensa, esportivo, de artes e ofícios, jurídico-social, doutrinário e de comissão de moços, a
Frente se propunha, conforme ditavam seus estatutos registrados em novembro de 1931, a
realizar “a união política e social da Gente Negra Nacional, para a afirmação dos direitos
históricos da mesma, em virtude da sua atividade material e moral no passado e para
reivindicação de seus direitos sociais e políticos, atuais, na comunhão brasileira” ao mesmo
73
GOMES, 2005, p. 48.
74
ANDREWS, 1998, pp. 230-231.
40
tempo que almejava a “elevação moral, intelectual, artística, técnica, profissional e física,
assim como assistência, proteção e defesa social, jurídica, econômica e do trabalho da Gente
Negra”.
75
Através do seu periódico oficial a partir de 1933, A voz da raça, a Frente
constantemente se posicionou a respeito das questões que agitaram a cena política do Brasil e
do mundo durante a década de 1930, além de atuar também como “grupo de pressão e lobby
em questões que envolvessem a discriminação racial”.
76
Em 1932, por exemplo, a FNB
atacou a questão do impedimento ao ingresso de negros na Guarda Civil de São Paulo (que
passou de formal a velado depois da já mencionada campanha do Centro Cívico Palmares em
1928), chegando a apelar diretamente ao Presidente Vargas que, “após receber uma delegação
da liderança da Frente, ordenou à Guarda que alistasse imediatamente 200 recrutas negros”.
77
Em 1933, Arlindo dos Santos Veiga, presidente da entidade, foi lançado como
candidato a deputado constitucional, simultaneamente a outro candidato negro, José Bento de
Assis, que no ano anterior havia participado da Revolução Constitucionalista como
comandante da Legião Negra de São Paulo. A candidatura de Assis surgiu como um
contraponto ao pensamento predominante da FNB, na época extremamente influenciado por
Santos Veiga, cuja formação católica e ultraconservadora fez com que se aproximasse do
integralismo e dos fascismos emergentes, além de ser um veterano militante da causa
monarquista. Seus discursos à época da campanha e mesmo depois, ao longo do restante da
década, eram profundamente nacionalistas, contrários à imigração e denunciatórios do perigo
do bolchevismo, em contrapartida ao tom mais conciliatório de Bento de Assis, cuja
abordagem da questão racial propunha “um segundo treze de maio” para o negro brasileiro.
78
Nenhum dos candidatos alcançou sucesso no pleito.
Entre os anos de 1933 e 1936, dissidências da militância negra paulista passaram a
criticar com freqüência o projeto político da Frente, que era cada vez mais influenciado pelo
conservadorismo de seus líderes, muito embora seu alcance não se estendesse muito além da
capital paulista, já que o núcleo de Santos “apoiava o Partido Socialista nas eleições e
mantinha fortes ligações com o Sindicato dos Portuários”.
79
A criação de uma pequena Frente
Negra Socialista evidenciou esse afastamento da FNB dos setores moderados e de esquerda
do movimento negro paulista, ao mesmo tempo em que suas diatribes contra estrangeiros e
75
GOMES, 2005, p. 52.
76
ANDREWS, 1998, p. 234.
77
Idem.
78
GOMES, op. cit., pp.64-65.
79
Idem, p. 60.
41
bolcheviques se tornavam cada vez mais enérgicas, bem como seu apoio aos regimes
totalitários em ascensão.
80
Embora essa radicalização política dificultasse a unificação dos interesses da gente
negra do Brasil,
A FNB continuaria em 1935 e 1936, quando se transformou em partido
político. Havia mesmo a perspectiva de um partido com representação
nacional. Mas em 1937, veio o Estado Novo de Getúlio Vargas, fechando
partidos e associações políticas. Foi um duro golpe para a FNB. Houve
mesmo um refluxo nas associações negras existentes. De um lado, o medo
da perseguição; de outro, a decepção diante da impossibilidade de uma
organização nos moldes políticos partidários.
81
Raul Joviano do Amaral, um dos idealizadores da Frente em 1931, ainda tentou, por
pouco tempo, “manter a organização, sob forma não-partidária, com o nome de União Negra
Brasileira”,
82
mas sem o apoio dos antigos militantes, a entidade acabou sucumbindo,
ironicamente, às vésperas do treze de Maio. Iniciava-se a partir dali, um dos pontos altos do
autoritarismo político no Brasil do século XX, com o fechamento do Congresso Nacional,
extinção dos partidos políticos e censura à imprensa. O Departamento de Propaganda e
Difusão Cultural fundando em 1934 evoluiria no final de 1939 para o Departamento de
Imprensa e Propaganda, órgão máximo de censura e divulgação da ideologia do Estado Novo.
A promulgação de uma constituição autoritária e centralizadora em 1937 colocava
extraordinários poderes nas mãos do chefe do poder executivo, fazendo desta segunda fase do
governo de Getúlio Vargas
[...] um período durante o qual as liberdades políticas e intelectuais estavam
severamente circunscritas e não havia vias institucionais para a expressão de
dissidência e oposição políticas. As organizações de massa capazes de
constituir uma ameaça ao governo eram reprimidas (destino final do
movimento integralista) ou mantidas sob o controle firme do Estado (caso
dos sindicatos).
83
Seria nessa peculiar conjuntura que o cinqüentenário do treze de maio seria
comemorado. A imensa maioria da sociedade civil, suas associações e organizações e suas
respectivas imprensas haviam percorrido em maior ou menor grau de intensidade o caminho
80
George Reid Andrews aponta para existência na FNB de uma “milícia” policial inspirada nos Camisas Verdes
de Plínio Salgado, comandada por Pedro Paulo Barbosa (além da adoção do lema “pela família, pelo país e por
Deus”, acrescentado de “pela raça” ao final). Cf. ANDREWS, 1998, pp. 238-239.
81
GOMES, 2005, p. 66.
82
FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.130. Embora efêmera, a União Negra Brasileira teve importante atuação
no episódio tratado pelo autor, contratando o jovem advogado Paulo Lauro para defender Arias de Oliveira,
acusado de assassinar quatro pessoas no Carnaval de 1938.
83
ANDREWS, op. cit., p. 240.
42
de contestação à velha ordem representada pela República Oligárquica e apoio ao movimento
de 1930. Mas poucas escaparam ilesas do torvelinho de radicalização política da década, e
muitas delas – a exemplo da Frente Negra Brasileira – foram pulverizadas pela guinada
antidemocrática representada pelo estabelecimento do Estado Novo.
O racismo científico já havia sido espanado dos grandes círculos intelectuais do país,
tendo sido gradualmente desacreditado primeiro, a partir da década de 1920, por um discurso
de cunho higienista que pregava a aplicação de uma “medicina social” para sanar os males e
doenças que degeneravam o corpo social, e depois, a partir da década de 1930, pelo cativante
discurso de Gilberto Freyre, de louvor à miscigenação e do vigoroso argumento de que o
Brasil é um país que “se define pela raça”.
84
A importância da herança africana para o Brasil
já era reconhecida, e a mistura entre as raças que havia marcado os quatro séculos anteriores
de história já não era mais vista como uma mancha ou empecilho ao desenvolvimento, e sim
como motivo de orgulho e traço definidor da nacionalidade.
Em suma, os afro-brasileiros já tinham o seu lugar no passado reconhecido, muito
embora no presente esse reconhecimento fosse muito mais difícil de ser alcançado.
Imprensado pelo início de um regime que rapidamente se equipava para consolidar e expandir
a sua influência, conquistando corações e mentes por todo o país aparecia o treze de maio,
completando cinqüenta anos. Um momento encorajante para reflexões a respeito de um
passado tão recente e que provocava tanto desassossego.
O estado de Santa Catarina que testemunharia o treze de maio de 1938 apresentava
no final daquela década duas características que o distinguiam do restante do país, no sentido
de definir o contexto social no qual a sua imprensa e suas instituições de elaboração do saber
iriam produzir e reproduzir interpretações a respeito da data da abolição.
Em primeiro lugar, a utilização da mão-de-obra escrava na província de Santa
Catarina sempre foi significativa ao longo do século XIX. Ao se levar em conta
levantamentos populacionais feitos entre 1797 e censo de 1872, o percentual de escravos em
relação à população livre sempre oscilou entre aproximadamente 20% a 22% da população
total da província, com um decréscimo significativo acontecendo somente a partir das
reformas de 1871, quando no censo do ano seguinte a população escrava baixou para cerca de
9,3% do número total de habitantes, um número que ainda assim pode ser considerado
84
SCHWARCZ, 1993, p. 247.
43
expressivo levando-se em conta o crescimento da população livre, principalmente de
imigrantes.
85
Embora considerável do ponto de vista quantitativo, a presença de escravos em Santa
Catarina era relativamente pequena em comparação às grandes regiões agroexportadoras do
nordeste e sudeste do país, onde a cultura extensiva da cana-de-açúcar e do café resultou
numa demanda muito maior e mais constante pela mão-de-obra escrava, e onde a população
de escravos africanos e crioulos, especialmente durante a primeira metade do século XIX,
geralmente representava um terço de todos os habitantes. A presença de escravos no estado
esteve, portanto, vinculada a uma realidade econômica específica, de pequena produção
comercial voltada para o mercado interno de abastecimento,
86
fazendo com que tanto em
observações de contemporâneos da escravidão quanto em estudos históricos ao longo da
maior parte do século XX a escravidão em Santa Catarina tendesse a ser menosprezada em
comparação com o restante do país.
87
Em segundo lugar, o estado de Santa Catarina às vésperas do treze de maio
apresentava uma população que nos últimos cinqüenta anos havia se “embranquecido” numa
proporção muito maior do que o resto do país, ao menos no que pode ser auferido através da
análise de dois censos cuja distância em anos corresponde de maneira aproximada aos
cinqüenta anos passados desde a Lei Áurea: o de 1890 e o de 1940. Neles, podem ser
observadas diferenças expressivas em relação às modificações das composições étnicas da
sociedade brasileira e catarinense, segundo aponta a tabela a seguir:
85
PEDRO, Joana Maria et al. Negro em terra de branco: escravidão e preconceito em Santa Catarina no século
XIX. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. p. 19.
86
Idem, p. 16.
87
LEUCHTENBERGER, Rafaela. Novas perspectivas para a historiografia do trabalho em Santa Catarina.
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