3. Era Vargas, Brasil e Santa Catarina no Cinqüentenário.
Quem mandava aqui era eles, eles que eram donos do mundo... a Princesa
Isabel acabou com o cativeiro, mas depois continuou o aperto ainda. Quem
derrubou um bocado desse aperto foi Getúlio Vargas, em 1930, foi
derrubando, derrubando, derrubando e acabou com o cativeiro... até acabou
com o aperto, não é cativeiro não, é o aperto.
[...] Em 30 que houve a libertação, que antes disso, de 30, os fazendeiros
ainda prendiam os camaradas à força. Botava na frente, levava a cavalo...
não tinha lei. Depois que o Getúlio acabou com esse negócio... botou lei, lei,
lei até que mataram ele depois. Quem botou a lei foi o Getúlio, antes não
tinha lei não.
Joaquim Elias – Seu Julião, RJ, 27/10/1995
63
Ah, minha irmã... o Getúlio adiantou nosso povo. O Getúlio começou a lei,
com Getúlio tinha lei, irmã. Não existia lei antes do Getúlio não, irmã.
[...] O povo, a gente era bicho. Olha aqui: não foi a Princesa Isabel que nos
libertou não. Ela assinou, irmã, mas não fez nada não, irmã. Ela assinou a
libertação, mas quem nos libertou do jugo da escravatura, do chicote, do
tronco, foi Getúlio, Getúlio Dorneles Vargas.
Cornélio Cancino, RJ, 9/05/1995
64
Os depoimentos acima, integrantes do acervo do Laboratório de História Oral e
Imagem da Universidade Federal Fluminense e apresentados por Hebe Mattos e Ana Lugão
Rios em Memórias do Cativeiro são determinantes para compreender a extensão da influência
da Revolução de 1930 e do Estado Novo sobre o imaginário nacional, e em particular sobre o
segmento da população brasileira que nas primeiras décadas do século XX vinha lutando
contra o passado e os estigmas da escravidão, ainda muito recente na memória do país.
Em seu conjunto, os relatos selecionados revelam uma divisão categórica: se até a
chegada da década de 1930 o cotidiano dos filhos e netos de ex-escravos era marcado por uma
extrema mobilidade em busca de melhores condições de trabalho, dificuldade em alcançar um
melhor padrão de vida e convivência com a arbitrariedade (e por vezes violência) dos
fazendeiros e proprietários de terra, após a Revolução de 1930 ocorre uma inflexão no tom
dos relatos, que de forma unânime passam a exaltar as enormes contribuições sociais que o
governo Vargas teria proporcionado para suas famílias, contrapondo o período de bonança e
63
RIOS; MATTOS, 2004, pp. 127-128
64
Idem, p. 129.
35
justiça que se inaugurou com os tempos difíceis que se seguiram ao fim do cativeiro,
especialmente as três primeiras décadas do século XX.
É certo que muito desta profunda devoção à era Vargas não foi somente fruto
imediato de quaisquer transformações sociais efetivas que tenham ocorrido na década de
1930, mas está diretamente relacionada ao pós-1937, e à bem-sucedida tarefa da máquina de
propaganda estadonovista, constituída principalmente pelo Departamento de Imprensa e
Propaganda e o Ministério do Trabalho, de construir o maior e mais eficiente mito político da
história do Brasil. A extensão do sucesso deste empreendimento pode ser identificado no
relato de Cornélio Cancino quando este afirma que “não existia lei antes do Getúlio”. É
inclusive curioso observar tamanha admiração de um agricultor pela era de justiça
proporcionada pelo presidente já que, conforme aponta Ângela de Castro Gomes, as benesses
da legislação trabalhista de Vargas não eram estendidas aos trabalhadores do campo.
65
Embora os debates historiográficos em torno da Revolução de 1930 tendam a se
polarizar, tendo de um lado a interpretação de “ruptura” com os antigos modelos políticos e
econômicos e do outro a tese da “continuidade” na forma de uma simples troca de poder entre
oligarquias regionais,
66
ao observar a trajetória do pensamento racial brasileiro, da
historiografia nacional a respeito da escravidão e da experiência das populações de origem
africana ao longo do século XX, é impossível não observar uma profunda mudança a partir de
1930, especialmente nos anos imediatamente subseqüentes à chegada de Vargas ao poder.
Sob todos os aspectos, foi uma época em que muitas idéias sobre a herança escravista do
Brasil foram abandonadas e tantas outras foram criadas para se arraigarem fortemente no
imaginário nacional.
O próprio uso do termo “revolução” parece apropriado para definir a época a partir
deste ponto de vista. Vavy Pacheco Borges aponta a analogia feita por Sérgio Buarque de
Holanda em seu Raízes do Brasil de 1936 entre o processo iniciado em 1888 e os
acontecimentos de 1930: uma revolução “à brasileira”, lenta e pacífica, cujo fim seria liquidar
os “fundamentos personalistas” que durante séculos impediram o pleno desenvolvimento do
país.
67
Não é fortuito que o pensamento de um dos maiores intelectuais brasileiros do século
XX esteja de certa forma contido nas falas de camponeses de origem africana do Vale do
Paraíba, que de forma quase unânime identificam a Revolução de 1930 com “libertação”,
“leis” e “justiça”.
65
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988.
66
BORGES, Vavy Pacheco. Anos trinta e política: história e historiografia. In: FREITAS, Marcos Cezar de
(Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2005.
67
Idem, p. 168.
36
O marco dessa virada de pensamento que correu paralelamente às transformações
sociais advindas com a Revolução foi o destaque alcançado pela obra de Gilberto Freyre,
principalmente seu livro Casa grande e senzala de 1933, cuja influência se faria sentir no
Brasil e no mundo de sua época, bem como nas comemorações do cinqüentenário da Abolição
que seriam realizadas dali a cinco anos. É de fato impossível entender o tom das
comemorações de 1938 sem atentar para a profunda influência que suas principais idéias
tiveram para o cenário intelectual da década de 1930: a concepção de uma sociedade
paternalista, baseada no poder patriarcal com ênfase nas relações pessoais - onde a extensão
do domínio escravista e a intensa miscigenação entre as raças foram interpretadas como
resultado de uma relação amena entre senhores e escravos. Mais do que esse caráter peculiar
da escravidão brasileira, de “moderação e doçura” dos senhores em relação aos escravos em
comparação com outros países onde também imperavam regimes escravistas, outros dois
aspectos sobremaneira importantes seriam extraídos da obra de Gilberto Freyre e
incorporados aos debates nos anos seguintes.
De um lado, a antropologia cultural de Gilberto Freyre inaugurou uma nova era na
história e na sociologia brasileiras, ao atentar pela primeira vez para a importância decisiva da
herança africana para a evolução da sociedade nacional, provocando uma “mudança de curso
das idéias pseudo-científicas sobre a inferioridade da raça negra, ao destacar de modo incisivo
as raízes africanas e a importância destas na cultura brasileira” de forma que em todos os
grandes estudos de história e sociologia posteriores, essa herança cultural jamais deixaria de
ser tratada como fator crucial.
68
Por outro lado, a obra de Freyre ajudou a cristalizar o conceito (embora para muitos
não passe de um mito) de “democracia racial”. Em suas linhas mais gerais, a tese sustenta ser
o Brasil
[...] uma terra inteiramente livre de impedimentos legais e institucionais para
a igualdade racial, e em grande parte (particularmente em comparação com
os Estados Unidos) também isento de preconceito e discriminação raciais
informais. A nação oferece a todos os seus cidadãos – negros, mulatos ou
brancos – uma igualdade de oportunidade virtualmente completa em todas as
áreas da vida pública: educação, política, empregos, moradia. Por isso, os
afro-brasileiros desfrutam de oportunidades para se aprimorar e da liberdade
para competir com seus concidadãos na luta por bens públicos e privados,
em grau desconhecido em qualquer outra sociedade multirracial do mundo.
69
68
QUEIRÓZ, Suely Robles Reis de. Escravidão negra em debate. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.), 2005,
p. 104.
69
ANDREWS, 1998, p. 203.
37
Muito embora a realidade social do país desmentisse esse quadro de igualdade de
direitos e condições, o tom simultaneamente conciliatório e autoritário da política brasileira
durante o Estado Novo foi um terreno especialmente fértil para a consagração dessa idéia a
respeito da história do Brasil: um caldeirão étnico que serviu para amenizar as diferenças
raciais durante a vigência da escravidão e liquidá-las com o seu fim. Numa sociedade onde
emergiam novos valores de trabalho e patriotismo, o conceito de uma sociedade solidária, sem
distinções entre raças e composta apenas de trabalhadores conscientes do seu dever para com
a nação era extremamente útil para fins de propaganda política. No entanto, seria apenas com
a instauração da ditadura do Estado Novo em 1937 que tal conceito (depurado de seus
aspectos mais radicais de esquerda e direita) seria sistematizado pela máquina de propaganda
varguista e utilizado como poderosa ferramenta política. Ainda no começo desse percurso, o
início da Era Vargas traduzir-se-ia num momento de grande agitação política e intelectual, na
qual a população negra do Brasil veria uma oportunidade de se fazer ouvida.
De fato, os primeiros anos da década de 1930 revelam-se como o ponto alto de um
longo processo de organização da vida associativa das populações negras de todo o país,
especialmente em São Paulo, onde o crescimento industrial dos anos 1930 atraiu um grande
contingente de trabalhadores nacionais e estrangeiros, estabelecendo tensões e disputas pelo
trabalho e por espaços de sociabilidade. Flávio dos Santos Gomes aponta para o nascimento
entre o início do século XX e o estabelecimento do Estado Novo de uma verdadeira “classe
dos homens de cor” no estado de São Paulo, baseada em clubes, associações e ligas
recreativas e fortemente amparada por dezenas de jornais e periódicos que dialogavam
intensamente com as idéias que agitavam a cultura e a política da época. Apesar de ter sido
protagonizada pela pequena fração da população negra alfabetizada da época, a imprensa
negra paulista desempenhou um importante papel ao produzir durante o período
[...] interpretações diferenciadas sobre os problemas político-sociais do país
através de um olhar reflexivo. Isso porque, ao fazê-lo, inseria-se num cenário
em que grande parte dos projetos políticos de “direita” ou de “esquerda”
preferia ignorá-la – como seguiu fazendo a imensa maioria das narrativas
historiográficas do período.
70
Mesmo antes do clima de possibilidades e expectativas instaurado pela Revolução, a
intelectualidade negra de São Paulo expunha suas idéias a respeito da necessidade do
progresso da raça negra no Brasil. Em 1925, O Clarim d’Alvorada, de São Paulo, propunha a
70
GOMES, 2005, pp. 35-36.
38
realização de um Congresso da Mocidade dos Homens de Cor, e um ano depois, era criado o
Centro Cívico Palmares. Originalmente dedicado à formação de uma biblioteca comunitária,
A organização logo progrediu e passou a patrocinar encontros e conferências
sobre questões de interesse público, e em 1928 lançou uma campanha para
derrubar um decreto do governo que proibia aos negros ingressar na milícia
do Estado, a Guarda Civil. O Centro foi bem-sucedido ao requerer do
Governador Júlio Prestes que suspendesse o decreto, e depois o convenceu a
derrubar uma proibição similar que impedia as crianças negras de participar
de uma competição patrocinada pelo Serviço Sanitário de São Paulo para
encontrar o bebê mais “robusto” e eugenicamente desejável do Estado.
71
Além dessa atuação destacada de reivindicação de direitos, os pensadores dos
movimentos negros ainda articulavam-se constantemente com seus pares norte-americanos,
realizando um intercâmbio de idéias onde eram postas em contraste suas diferentes visões a
respeito de mobilização política, raça e cidadania. Em Mães pretas, filhos cidadãos, artigo
onde é discutido o envolvimento da intelectualidade negra do Rio de Janeiro e São Paulo em
torno da proposta de construção de um monumento em homenagem à Mãe Preta na cidade do
Rio, Micol Siegel, demonstra como as noções de fraternidade e harmonia racial, corroboradas
através da comparação com a realidade muito mais lúgubre das relações entre negros e
brancos nos Estados Unidos, já apareciam como eixo mais visível da fama internacional do
país já na década de 1920, muito antes de serem popularizadas pela obra de Gilberto Freyre:
O jornal Progresso [em 1928] publicou a opinião vigente de um viajante
hindu teosofista que afirmava que os brasileiros demonstravam ter mais
“fraternidade” que qualquer outro povo que ele havia conhecido; [em 1926]
Gervasio Moraes, de O Clarim criticou a KKK e o ódio racial norte-
americano, enquanto exaltava seu país, onde “o negro brasileiro estende a
mãe da fraternidade aos seus irmãos brancos...”. Os linchamentos e outros
horrores das relações raciais norte-americanas, lembrou um autor do jornal
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