Empirismo e racionalismo
Foi nos
Prolegómenos que, exagerando talvez um pouco,
Kant declarou:
«Desde os
ensaios de Locke e de Leibniz, ou antes,
desde a origem da metafísica, tanto quanto alcança a
sua história, nenhuma ocorrência teve lugar que
pudesse ser mais decisiva, a respeito do destino desta
ciência, do que o ataque que David Hume lhe
montou». (p. 4:257)
Kant refere-se ao
Ensaio sobre o Entendimento Humano,
de Locke, publicado em 1690, e aos
Novos Ensaios sobre o
Entendimento Humano, de Leibniz,
originalmente redigido
em francês, e que data de 1704, apesar de só alguns anos
depois ter sido publicado. A segunda obra, escrita sob a
forma de diálogo, visa refutar a primeira,
livro a livro e
capítulo a capítulo. O que está em causa é o famoso
conflito, tantas vezes mal compreendido e caricaturado,
entre o empirismo de Locke e Hume e o racionalismo de
Leibniz.
Segundo
a caricatura comum, os filósofos empiristas
defendem que todo o conhecimento é
a posteriori, ou seja,
resulta da experiência, ao passo que os racionalistas
defendem que todo o conhecimento é
a priori, ou seja, é
independente da experiência. Que isto é uma caricatura
torna-se evidente quando se considera que um racionalista
teria de explicar como sabemos, pelo raciocínio apenas, que
está a chover, por exemplo, tendo um empirista de explicar
como sabemos, pela experiência apenas, que o número
cinco é ímpar. Nenhuma das alternativas é particularmente
promissora. Além disso, esta caracterização
sugere que a
oposição é uma questão de saber qual é a origem do
conhecimento; mas o que está realmente em causa é o
processo de justificação envolvido.
Na verdade, como vimos no caso de Descartes (Cap. 1),
os racionalistas não defendem que podemos saber, pelo
raciocínio apenas, que está a chover,
por exemplo, o que
não seria particularmente judicioso. O que defendem é que
só o raciocínio puro constitui a justificação última de todo o
conhecimento, empírico ou não. Assim, os racionalistas não
negam que só por meio dos sentidos podemos saber que
está a chover; mas negam que possamos saber tal coisa
pelos
sentidos apenas, sem uma justificação independente
da experiência.
Por outro lado, os empiristas não têm de negar que a
justificação envolvida no conhecimento matemático envolva
exclusivamente o raciocínio;
mas negam que tal constitua
um conhecimento substancial da realidade física. E
defendem que sempre que temos conhecimento substancial
da realidade física, a justificação envolvida depende
inevitavelmente da experiência.
Kant ficou bastante mais impressionado com a defesa do
empirismo levada a cabo por Hume do que com a de Locke.
Daí que acabe por admitir famosamente que foi o primeiro
quem o despertou do sono dogmático:
«Confesso francamente: foi a advertência de David
Hume que, há muitos anos,
interrompeu o meu sono
dogmático e deu às minhas investigações no campo
da filosofia especulativa uma orientação inteiramente
diversa». (p. 4:260)