Genealogia da moral
Em crianças, não temos plena liberdade para fazer o que
nos dá na telha: os nossos pais ou educadores têm
autoridade sobre nós. Mas também não
a temos depois de
adultos: outros adultos, em nome de instituições como a
polícia, os tribunais e o parlamento, têm imenso poder
sobre nós. Essas instituições fazem parte do estado. O que
poderá justificar que o estado tenha tal poder sobre adultos
autónomos? Terá a
autoridade do estado uma boa
justificação?
Thomas Hobbes imaginou o que seria viver sem estado e
considerou que uma circunstância dessas seria a guerra de
todos contra todos:
«Com isto torna-se manifesto que, durante o tempo
em que os homens vivem sem um poder comum
capaz de os manter a todos em respeito,
eles se
encontram naquela condição a que se chama guerra;
e uma guerra que é de todos os homens contra todos
os homens». (
Leviatã, Cap. XIII, p. 111)
John Locke era menos pessimista: considerava que sem
estado não seria exactamente a guerra de todos contra
todos, mas não seria mesmo assim possível desenvolver
todas as coisas que tornam a vida humana melhor, como a
medicina ou as artes, porque
bastariam algumas pessoas
mal-intencionadas para se estragar a écloga.
Tanto Locke como Hobbes eram cristãos. Mas o segundo
está mais interessado em pensar no que ocorre quando
consideramos os seres humanos independentemente de
qualquer sentido moral natural que possam eventualmente
ter, ao passo que Locke raciocina pressupondo que as
pessoas têm, na sua maior parte, um sentido moral natural,
a que chama
lei da natureza.
As duas abordagens são esclarecedoras: a de Locke
mostra que basta que uma pequena minoria de pessoas
tenha comportamentos injustos para precisarmos da
protecção do estado; a de Hobbes mostra como as próprias
ideias de moralidade poderão surgir de uma mentalidade
amoral.
Uma explicação hobbesiana
da origem da moralidade
consiste em começar por considerar um conjunto de
pessoas sem qualquer sentido moral. Isto significa que nada
impede que uma delas mate, roube ou explore qualquer
outra, desde que disponha da força suficiente. Só que
qualquer uma das outras pode fazer o mesmo. E, por isso, o
resultado é ficarem todas pior.
Assim, é melhor instituir contratos, fazer alianças, criar
regras e leis —
em resumo, o estado. A moralidade e o
estado resultam ambos de simples racionalidade: todos
vivemos melhor com regras morais e estados do que sem
eles. A experiência mental conhecida como
dilema do
prisioneiro ajuda a clarificar o que está em causa.