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estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e563, jan./abr. 2019.
pela cor, pelos movimentos, pela voz, e “mesmo pelas funções, partes ou qualidades de
sua natureza” [...] Nele, a natureza afastou-se de seu curso habitual (ab usitato cursu), saiu
de sua órbita (exorbitasse) (Kappler, 1994, p. 299–300).
Essa presença dá ao texto a característica do grotesco, pois “[a] seu rol pertence tudo que é
„monstruoso‟” (Kayser, 2003, p. 157). Mas os modos de manifestação desse ser diferente de seu
entorno são totalmente justificados, pois “é inerente a essas criaturas ser o que são, no lugar
onde estão” (Kappler, 1993, p. 46).
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E a palavra “lugar”, aqui, tem significação intratextual e
intertextual. O primeiro lugar refere-se ao jardim em que se passa a fábula do conto; o segundo
lugar refere-se à posição ocupada por esse conto em relação à obra de Lygia Fagundes Telles.
Ao construir um texto prenhe de simbolismo, Lygia Fagundes Telles assume o seguinte:
O universo se ordena numa geometria simbólica e segundo uma escala de valores que
atribui um lugar a cada elemento, tanto espiritual quanto material. Se esse lugar é
nitidamente determinado, o elemento ao qual ele é atribuído, por sua vez, é
simultaneamente uno e múltiplo: ao mesmo tempo em que é ele mesmo, é parte do Todo e
abriga em si as qualidades e os segredos deste. Entre o mundo e ele há afinidades,
correspondências. Por isso, quando nos interessamos com determinado domínio da
criação, é com o universo inteiro que nos havemos (Kappler, 1994, p. 14).
Ao nos dar Kobold e sua narração, Lygia nos entrega de forma condensada tudo que nos
houvera dado anteriormente, num “símbolo de totalização, de recenseamento completo das
possibilidades naturais”, como diz Gilbert Durand (apud Kappler, 1994, p. 7). Assim, Kobold é
encapsulamento do drama de seu entorno e é encapsulamento do drama das personagens
lygianas, da mesma forma como o conto em que se encontra é uma condensação da contística de
sua autora.
Segundo Kappler, o ponto alto de uma viagem seria o encontro com um monstro, “pedra de
toque da autenticidade de uma viagem: quem não viu monstros não viajou!” (Kappler, 1994, p.
159). Considerando então “Anão de jardim” a última parada da viagem pela contística lygiana,
não parece estranho que justamente nele esteja o grande monstro de sua literatura “deformis
formositas ac formosa difformitas: formosura disforme e deformidade formosa”, como disse São
Bernardo (apud Kappler, 1994, p. 49), pois sua distinção/estranheza é apenas aparente:
É nesta direção que se deve interpretar o monstro: ele obscurece do mesmo modo
que revela a ordem universal; obscurece para revelar. Lugar onde a natureza brinca,
ele é o enigma que dá ao homem a oportunidade de atingir o conhecimento fora das
vias pueris onde é extraviado pela ilusória necessidade de disjungir, para
compreender, o que é uno (Kappler, 1994, p. 50).
Afinal, à decomposição e cisão das personagens, contrapõe-se a rígida composição e unidade
do texto, na obra lygiana em geral e, em particular, neste conto grotesco. O grotesco, entre outras
características, assume-se trazendo “deslocamentos escandalosos de sentido, situações absurdas,
animalidade”, trazendo o ridículo, o riso, o escárnio (Sodré e Paiva, 2002, p. 17). Assim como o
monstruoso, o grotesco também está intimamente relacionado a seu contexto. Surgindo “como
sintoma de crises profundas” (Sodré e Paiva, 2002, p. 76), ele explicita esse problema jogando “um
sorriso sobre as deformidades, um asco ante o horripilante e monstruoso em si” (Kayser, 2003, p.
31). O riso provocado por esse exagero difere, no entanto, do cômico, que seria o riso sem peso.
No primeiro, nós nos abalamos; no segundo, continuamos firmes. O segundo mantém-nos firmes
no solo; o primeiro “tira o chão de sob os pés” (Kayser, 2003, p. 61).
Esse riso também é cruel, e essa crueldade, em “Anão de jardim”, é-nos dada por uma voz
que condensa as personagens lygianas e plasma nossa condição de decaídos; um anão que,
segundo José J. Veiga (1996), carrega consigo “o sentimento do mundo”: Kobold, condensação
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O monstro pode ser encontrado em outros textos de Lygia Fagundes Telles: um cão que narra e em determinado instante se
antropomorfiza, voltando depois à condição de cão, sem perder o dom narrativo, como o narrador de “Crachá nos dentes”, de A
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