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Nilton Resende
estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e563, jan./abr. 2019.
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sem horizontes para os quais possam dirigir o olhar: um olhar ferozmente centrado nos
limites da própria impotência (Bosi, 2013, p. 113).
Ao viverem assim, as personagens alijam-se de seu valor simbólico, o que as joga em um
estado de diabolismo. A palavra “diabólico” provém do grego diabállein, formado por
bállein (lançar/jogar) e dia (separado). Esse vocábulo traz o sentido de jogar de forma
desagregada, separadamente, opondo-se ao sentido de “simbólico”, que provém de
symbállein, formado por
bállein (jogar/lançar) e
syn (junto). Se no simbólico há a ideia de
integridade, no diabólico há a desintegração. Um é união; o outro, dispersão. Suas
personagens vivem a experiência da desagregação, que se dá ora no âmbito interpessoal ora
no âmbito intrapessoal, havendo então uma cisão da personagem, a fundação de um abismo
nela mesma. E por essas personagens tentarem esconder suas verdades – e por algo precisar
ser dito ao leitor –, as coisas desempenham esse papel:
[...] Então os objetos como que se promovem a personagens. Porque os desencontros são
cada vez mais agudos. Já ninguém sabe de ninguém. [...]. Os objetos são cada vez mais, em
L.F.T., coisas-sinais, sem deixar de ser coisas. São elementos de composição de um drama
tão importantes como uma atitude, um esgar, uma fala. [...] atrevo-me a afirmar que Lygia
Fagundes Telles adquiriu este alto dom de fazer falar as coisas (Lopes, 1971, p. 2).
Esse “alto dom de fazer falar as coisas” alcança o ponto alto em seu “conto total”, em que
características temáticas e formais da autora vão atingir sua culminância. Assim, não há nele
uma fábula com eventos cotidianos narrados por uma terceira pessoa ou por uma primeira
pessoa comum. Também não é ele uma alegoria com elementos tirados de qualquer espaço
cotidiano. No “conto total” de Lygia Fagundes Telles, em que se condensa uma obra sempre
às voltas com personagens decaídas e conscientes de sua “própria impotência”, personagens
em constante diabolismo, e uma obra cuja autora “adquiriu este alto dom de fazer falar as
coisas”, temos um narrador que é um anão de pedra instalado num jardim que nos remete a
um Éden pós-Queda. Tudo isso vazado numa alegoria grotesca, dando-nos o
“superverdadeiro, o excessivamente real” (Kayser, 2003, p. 133). Talvez esta imagem nos seja
oportuna: se os outros contos de Lygia Fagundes Telles são leite, seu “conto total” é leite
coalhado. O grotesco é um leite coalhado. E, assim como o leite se solidifica nessa situação,
solidificam-se também as personagens lygianas ao serem representadas no narrador de
“Anão de jardim”, de modo a recrudescer seu diabolismo e sua impotência. Nessa alegoria
grotesca, o protagonista e narrador é um anão de pedra que quer tornar-se humano.
Um mundo alegórico “nos oferece os objetos perfeitamente alinhados [...] as relações entre
as ideias se encontram submetidas a um forte controle lógico” (Fletcher, 2002, p. 107, tradução
nossa).
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“Anão de jardim” é um texto cujos elementos têm uma intrincada relação simbólica, e
cujas desarmonias intrapessoais e interpessoais são representadas na harmonia intratextual,
que concorre para nos dar uma condensação da obra de Lygia Fagundes Telles, trazendo-nos
então uma harmonia intertextual. Eis a fábula: Kobold, um anão de pedra, está instalado no
jardim de uma propriedade particular em vias de ser demolida – também ele será destruído.
Enquanto espera, o anão fala dos eventos a seu redor: a madame adúltera às voltas com seus
amantes; o homem bom e morno, envenenado aos poucos com pequenas doses de arsênico
que a esposa coloca em seu chá; as chantagens que a madame sofre por parte de sua
empregada; o gato que mija em seus pés (do anão); o cachorro dissimulado; as crianças que
Kobold diz serem vermes. O anão de pedra fala, sobretudo, de seu desejo de tornar-se
humano, pois, ele afirma, não teria as mesmas atitudes dos homens, que parecem não estar à
altura de sua (deles) condição. Ele conta seu desejo e reza a Deus para que se realize.
Em sendo o narrador uma estátua falante, podemos dizer que ele é “um monstro”:
Em relação à maioria, monstro – maravilha ou prodígio – distingue-se pela raridade [...].
Monstro é aquele com cujo aspecto não estamos acostumados, pela forma de seu corpo,
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Em espanhol, no original: “nos ofrece los objetos perfectamente alineados [...] las relaciones entre las ideas se encuentram
sometidas a un fuerte control lógico”.