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estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e563, jan./abr. 2019.
o que fora dito anteriormente de outros modos; um conto-representação do mundo ficcional desse
escritor, em que aspectos temáticos e formais de sua obra alcancem o seu paroxismo, como se tudo
dito antes tivesse existido para terminar num único texto. Um texto cujos elementos não apenas
dialoguem entre si, mas tracem diálogo com o restante da obra, aparecendo como uma súmula, uma
afirmação da homogeneidade autoral, em que não apenas se rediga o que foi dito antes, mas que se
diga de forma ainda mais intensa – ou seja, um “conto total”.
Não tomemos essa expressão como “le livre” de Mallarmé (1991, p. 125), projeto de um texto
que “viesse a dar conta de tudo” e, por isso mesmo, apenas um projeto. Para Mallarmé, talvez o
mundo existisse para terminar num livro.
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Então, partindo dessa proposição, digamos que talvez
o mundo ficcional de um autor possa existir para terminar num único texto – possivelmente, um
conto. E foi essa a impressão que me ficou quando da leitura de “Anão de jardim”, último conto
do último livro de contos de Lygia Fagundes Telles, A noite escura e mais eu.
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Na contística de Lygia Fagundes Telles, deparamo-nos com algumas constantes: o
malogro, a saudade de um estado edênico agora perdido, a condenação ao estado de
Queda, personagens cindidas interiormente. Tais constantes nos são dadas através de uma
linguagem límpida e de fácil acesso, cuja fábula é facilmente apreendida, mas trazendo
outras narrações sob aquela evidenciada na superfície:
A legibilidade de seus textos tem a rara virtude de alcançar tanto o leitor comum [de
diversas idades], que vê neles espelhado um pouco de seus próprios anseios, como o
exigente leitor erudito, que logo percebe, sob a aparente facilidade da linguagem, a
cuidadosa arquitetura que sustenta as tramas (Silva, 2009, p. 16).
Para isso, Lygia faz uso da alegoria numa linguagem que não chama demasiado a atenção para
si. Em seus textos, os elementos alegóricos não surgem como metáforas, que feririam o campo
semântico, mas surgem com o enriquecimento na significação do que normalmente comporia o
ambiente: os objetos, os cômodos da casa, os gestuais transformam-se em conarradores, dizendo-
nos a história sob a história. Assumem essa função porque as personagens escamoteiam, fingem,
mentem, escondem-se, vivendo “[...] num mundo em que tout le monde triche [...]. Daí a razão de
uma maior aderência às coisas e objetos” (Linhares, 1973, p. 111).
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Segundo Alfredo Monte,
[...] personagens “enredadas” presas na proverbial ciranda petrificada, no aquário (não por
acaso os títulos dos seus romances iniciais, Ciranda de pedra, Verão no aquário). Apesar dos
acordes dissonantes, é um mundo em que a estagnação e a decadência permeiam as
relações de forma quase patológica, sinistra (Monte, 2013).
A respeito das personagens lygianas, diz Alfredo Bosi:
Dizer que estes contos de Lygia Fagundes Telles nos dão a anatomia do cotidiano é
dizer pouco. As palavras, os gestos e o silêncio ameaçador que tantas vezes os rodeiam
não só desenham partes e junturas da desolação de cada dia: vão além, decompõem os
mecanismos implacáveis que não cessam de operar dentro do sujeito e da sociedade
que nele se introjetou. É um realismo cru, cruel, cruento.
Sempre me impressionou o terrível senso de pura imanência que atravessa os contos de
Lygia Fagundes Telles. Não há saídas nem para o círculo do sujeito fechado em si mesmo
nem para o inferno das relações entre os indivíduos. Tudo está submetido à lei da
gravidade. Tudo tem peso, já caiu ou está prestes a cair. Natureza, História, Deus... cifras
de alguma forma de transcendência habitam fora e longe do cotidiano dessas personagens
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A ideia de um texto total, um texto que “viesse a dar conta de tudo”, foi defendida por Mallarmé em Le livre, instrument spirituel
(1897): “Uma proposição que emana de mim [...] sumária quer, que tudo, no mundo, exista para terminar num livro” (Mallarmé,
1991, p. 125).
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Considero-o como seu último livro de contos por conta de os livros seguintes terem a natureza híbrida de “invenção e memória” ou
a natureza de crônica: Invenção e memória (2000), Durante aquele estranho chá (2002). Um volume de contos foi publicado em
2012, Um coração ardente, mas não traz textos inéditos, sendo uma compilação de contos que estavam dispersos. Assim, A noite
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