estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e563, jan./abr. 2019.
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A ficcionista explora obstinadamente o desencontro dos personagens, expõe a face
dramática das fraquezas humanas, veda os caminhos da redenção. E quando a intensidade
da situação esgota a capacidade de resistência, o mundo transfunde-se em mistério, em
produto de magia, em seara de encantamento (Lucas, 1971, p. 13).
Kobold é o paroxismo do dividido na obra lygiana, cujas personagens humanas não são
melhores do que o anão de jardim. Diz Lygia Fagundes Telles em entrevista concedida a Paulo
Moreira Leite: “[m]eu dever é testemunhar as coisas ruins do meu tempo [...], as boas eu deixo
para Grande Hotel, Capricho, essas coisas”.
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E uma das coisas ruins é justamente a
impossibilidade: “[e]m certos contos de Lygia Fagundes Telles a impotência de algumas
personagens constrói a trama na qual pode se desenrolar um efeito trágico” (Bettella, 2010, p.
21). E por ter consciência de sua impotência, Kobold sonha:
Por mais que a uma investigação semiológica possamos encontrar nos seus contos a marca
de certo desencanto com os seres humanos de modo geral, haveremos sempre de perquirir
no fundo certa nostalgia de um mundo edênico, de antes da queda, ou melhor, do
desencadear dos processos civilizatórios. Daí o clima permanente de evocações que
envolve os seus melhores trabalhos (Lucas, 1971, p. 13-14).
O anão de pedra realiza sua prece dirigindo-se a Deus e não ao homem, que, numa escala
hierárquica, deveria ser o seu interlocutor. Assim, Kobold vai além de Rahul (o gato que
sonhava com o homem em As horas nuas). Sendo a última narrativa do último livro de contos de
Lygia Fagundes Telles, Kobold parece condensar em si uma grande problemática do humano
na obra da autora: a condição de ser cindido. Kobold surge como se trouxesse em si as
personagens anteriores, confirmando o que diz Nelly Novaes Coelho (1971, p. 149):
[...] outra das constantes subterrâneas a alimentar a ficção de Lygia Fagundes Telles: a
reação das criaturas em face do mundo ético ou do mundo convencional em que se vêem
situadas. Fascinante problemática ainda não esgotada em seus escritos até agora, nem
solucionada pelas personagens que a têm vivido. Daí, certamente, a volta de certas
personagens, sob outros avatares, em livros diferentes, como se não tivessem dito tudo
quando nasceram; como se tivessem vampirizado a sua criadora... relutando em
abandoná-la antes de terem sido por ela totalmente desvendadas.
Kobold, como as outras personagens lygianas, é ambivalente, vítima e algoz como, por
exemplo, as protagonistas do conto “A medalha”, em que mãe e filha digladiam-se. Diz Kobold:
As vozes dos demolidores estão mais nítidas, um deles parou para arregaçar as mangas da
camisa, vai acender um cigarro. Baixo o olhar e vejo um escorpião que saiu debaixo da
pedra e se aproximou até parar interrogativo diante do bico da minha bota. Sei que é o
último bicho que vejo, nenhum medo dele nem da morte mas agora é diferente, estou
ansioso, ansioso, ah! se pudesse compreendê-lo, mas escorpião não precisa de
compreensão, precisa de amor. Tem a cor da palha seca e a cauda erguida, está com a
cauda em gomos sempre erguida no alto e em posição de dardo, o veneno na ponta aguda,
é um lutador pronto para se defender. Ou atacar (Telles, 2009a, p. 107-108).
Sendo o escorpião a última visão de Kobold, parece haver aí um desejo mágico, por parte do
anão, de guardar consigo a visão do que ele pretende ser. Kobold é de certo modo um scorpio
pronto para a luta, na defensiva ou no ataque. Um ser que precisa ser amado, como as
personagens lygianas, mergulhadas na sombra do mundo ou na própria sombra.
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Personagens
mergulhadas em tentativas de se proteger ou de atacar seu algoz. “[C]riaturas interiormente
desarvoradas, perdidas em si mesmas, afundando-se na própria consciência como areias
movediças” (Coelho, 1971, p. 145). Criaturas às voltas com “os animais emergentes do abismo”:
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LEITE, Paulo Moreira (1977). Lygia: sou uma testemunha das coisas ruins do meu tempo. Folha de S. Paulo. São Paulo, Caderno
Ilustrada, p. 46, 17 jun.
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Personagens como Luisiana (“Apenas um saxofone”), Leontina (“A confissão de Leontina”), Wlado (“WM”), Rodolfo (“Verde
lagarto amarelo”) e muitos outros.
“Anão de jardim” ––––––––––––
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