estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e563, 2019.
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Mitologicamente tida como rival da humanidade, a serpente também pode encarnar o que
há de inferior, obscuro, raro, incompreensível e misterioso no psiquismo humano (Chevalier e
Gheerbrant, 2005, p. 814). No entanto, também lhe é atribuída a “função ctoniana de executor
da justiça divina” (Chevalier e Gheerbrant, 2005, p. 824). Logo, o desejo de ser serpente, em
Kobold, não o afastaria do âmbito do que poderia ser tido como bom, pois ele estaria a
serviço do que seria costumeiramente esperado: impedir a morte do Uno. Ele seria
instrumento de justiça, picando o calcanhar de Pilatos, que, além de personagem histórico,
pode, na narrativa bíblica, ser tido como representação da consciência que, saindo de campo,
deixa que tome o comando a massa gritante das paixões, a turba.
Atente-se para o fato de ele pretender picar o calcanhar, algo também prenhe de significado.
Segundo uma crença Semang, na hora da morte a alma deixa o corpo pelo calcanhar.
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Geralmente, o escorpião e a serpente mordem no calcanhar. O calcanhar é como que a base
do ser humano, caracterizado pela posição de pé. Quando atingido, o homem cai. Para a
lógica imaginativa não parece nem um pouco contraditório que seja por ali que a vida ou a
alma escapem e que também por ali entre a morte (Chevalier e Gheerbrant, 2005, p. 165).
Considerando o jardim lygiano uma representação do pós-Éden, contamina-se este trabalho da
simbologia incutida no imaginário judaico-cristão, que vê na figura do homem a representação da
razão/do espírito – e na figura da mulher, a representação da paixão/da alma.
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Assim como no
Éden a queda deu-se por ter o homem cedido ao apelo feminino, também no conto é a
personagem feminina que leva consigo a consumação da queda, através de sua ambição, de sua
dissimulação. No entanto, não é ela de todo responsável, pois a perda do estado paradisíaco dá-se
por ter o homem assentido em relação à sedução: Adão cede ao chamado; o Professor deixa-se
engolir pela mornidão. O espírito cede à alma; a razão cede à paixão.
Vejamos algumas ocorrências em torno da esposa do Professor, Hortênsia/mulher/Eva:
[...] a sedutora Hortênsia (Telles, 2009a, p. 100).
Hortênsia entrou aqui trazendo [...] a caneca fumegante de chá-mate. [...] E levou a caneca
ao Professor, Toma logo, querido, assim vai esfriar! [...] Vou jogar no clube, ela avisou ao
sair toda saltitante, andava às vezes feito um passarinho. Ah, não vá deixar de tomar sua
sopa, já avisei a Marieta. Ficamos sós. Então eu tive ímpetos de agarrá-lo, sacudi-lo até
fazê-lo vomitar o chá, Seu idiota! Ela está te matando, te matando! (Telles, 2009a, p. 104).
Numa tarde em que Hortênsia chegou com a manta para cobrir-lhe os pés (fazia frio),
surpreendeu-o falando sozinho e fingiu zangar-se, Não quero que fale sozinho, querido,
isso é coisa de velho! [...] Mas isso já faz muito tempo, ela era amante do banqueiro com
quem ia para a Europa, acho que não pensava (ainda) em assassinar o Professor. [...] Trazia
o pequeno telefone dentro da sacola de lona vermelha e ficava fazendo suas ligações
secretas. [...] Aqui ela teve a notícia da morte do banqueiro e pela palidez que vi em sua
face (sempre corada) pude bem imaginar o quanto ele era rico. Vieram em seguida os
outros amantes, [...] o corretor que acabou seu cúmplice. [...] ao auge da discussão deu bem
para perceber que ele queria recuar, deve ter tido medo. Mas quando esse tipo de mulher
mete uma coisa na cabeça, vai mesmo até o fim (Telles, 2009a, p. 106).
Nas citações acima, vê-se que a ambição material aparece como motivo do assassinato do
Professor, que parece mais velho do que Hortênsia – a relação, sempre conflituosa, entre
pessoas de idades diferentes está presente também em “A ceia”, “A chave”, “As pérolas”,
8 Citando ELIADE, Mircea (1951). Le chamanisme et les techniques archäiques de l’extase. Paris: Payot.
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Lembramos aqui a característica misógina de muitas narrativas judaico-cristãs.
“Anão de jardim” ––––––––––––
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