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estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e563, 2019.
Falei na auréola da casa. Esse suave halo também surpreendi (às vezes) em redor da cabeça do
Professor, mas isso foi nos primeiros tempos, quando ele ainda tinha forças para vir compor
no seu violoncelo, ele compunha aqui ao meu lado. Mas assim que a distraída Hortênsia
(fazia a distraída) começou a executar seu plano para herdar esta casa (e outras), assim que
começou a esquecer (era esquecida) as tais pequenas doses de veneno na caneca do chá-
mate, a carne já envelhecida (setenta anos) do Professor começou a ficar mais triste. E o halo
foi se apagando até desaparecer completamente (Telles, 2009a, p. 101, grifos nossos).
Sendo o homem, simbolicamente, segundo a tradição judaico-cristã, aquele a quem é dado
cuidar da casa, a perda do brilho em ambos é inevitável, sendo eles simbióticos. Então o espaço
passa a ser aquilo que seu dono é: desfibrado, desencantado, plúmbeo, sinistro. Além do sentido
de divinização já citado anteriormente, o halo luminoso traz em si uma ambivalência, pois quem o
carrega poderá “esquentar, estimular e fecundar, ou, ao contrário, queimar, secar, esterilizar,
segundo as disposições do sujeito que receber os raios” (Chevalier e Gheerbrant, 2005, p. 767). No
homem, dono da casa e do anão, o halo não se afigura como algo que lhe dê poderes ou que o
livre de algum mal, mas como uma possibilidade que, não cultivada, fenece, esterilizando-se – a
potência de cuidar, não realizada em ato, visto que ele não consegue sequer cuidar de si mesmo.
Um homem que, um dia, comprou um anão e trouxe-o para depositá-lo no jardim de sua casa:
Kobold. Pois Kobold foi o nome que o Professor me deu, ele estava num antiquário
quando me descobriu de repente no fundo penumbroso de uma das salas. Achou graça em
mim (nesse tempo ainda ria) e disse ao vendedor que eu era muito parecido com seu avô
chamado Kobold, o avô tinha o mesmo nariz de batatinha, a pele toda enrugada e esse jeito
pretensioso de juiz que julga mas não admite ser julgado. Inclinou-se para me examinar e
pareceu agradavelmente surpreendido, Esse anão tem um furinho lá dentro do ouvido
como as imagens dos deuses chineses para ouvir melhor as preces. Não vai ouvir preces
mas o meu violoncelo (Telles, 2009a, p. 105).
Tendo os furos nos ouvidos, o anão, na loja, era, podemos dizer, um ser em potência, à
espera de que alguém lhe soprasse, de que alguém o plasmasse.
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Assim, o homem e o anão – de
gesso, matéria moldável, à semelhança do barro –, de certo modo, não apenas reproduzem a
relação Adão/Jardim do Éden, mas também a relação Deus/Homem. Logo, Kobold revoltoso
talvez opere em duas instâncias: i) representação dos elementos decaídos em um mundo
desencantado, por conta de não ter sido bem cuidado; ii) representação do homem decaído e
revoltado pelo abandono de Deus, que o teria deixado à própria mercê.
[...] e assim ainda ouso sonhar com uma vida porque sempre sonhei (e ainda sonho) com
Deus
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. Então peço isto, queria servi-lo na ativa, quero lutar com o amor que sou capaz de
ter e não tive, queria ser um guerreiro, não um discípulo-espectador mas um discípulo-
guerreiro, me pergunto até hoje como aqueles lá permitiram a crucificação de Jesus
Cristo. Eu sei do seu desencanto diante deste mundo que ficou ruim demais [...]. Na hora
do julgamento do Cristo [...] eu queria tanto entrar ali na forma de uma serpente e picar
Pôncio Pilatos no calcanhar! (Telles, 2009a, p. 107).
Sendo o Cristo, no pensamento cristão, o ser uno por excelência – aquele em quem não
haveria a cisão –, desejar salvá-lo é, de certo modo, o desejo de impedir que o diabólico/o
cindido se instale. Importante notar aí a referência ao discípulo-espectador, possível alusão à
humanidade inepta ou apática – a humanidade decaída.
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Isso nos remete a outro texto de Lygia Fagundes Telles, “Os objetos”, em que uma personagem (Miguel) trata desse aspecto, como
se vê nos excertos abaixo: “– Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho vale tanto quanto o peso de papel sem papel ou aquele
cinzeiro sem cinza, quer dizer, não tem sentido nenhum. Quando olhamos para as coisas, quando tocamos nelas é que começam a
viver como nós, muito mais importantes do que nós, porque continuam. O cinzeiro recebe a cinza e fica cinzeiro, o vidro pisa o
papel e se impõe, esse colar que você está enfiando... [...] Este anjinho não é nada, mas se toco nele vira anjo mesmo, com funções
de anjo” (Telles, 2009b, p. 12).
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Essa imagem está presente também em As horas nuas, quando o gato-narrador, Rahul, diz: “Inventei tudo isso? pergunto de novo.
Um gato que sonha com o homem assim como o homem sonha com Deus” (Telles, 2010a, p. 147). Algo semelhante ocorre também
no conto “Crachá nos dentes”, em que um cão é alçado à condição de humano – nos três textos, um ser descontente consigo e com
sua natureza pretende uma condição superior.
–––––––––––– Nilton Resende
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