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estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 56, e563, 2019.
Há animais preferidos pelo grotesco, como serpentes, corujas, sapos, aranhas – os animais
noturnos e os rastejantes, que vivem em ordens diferentes, inacessíveis ao homem. O
grotesco gosta, ademais, de todas as sevandijas (Kayser, 2003, p. 157).
Nesse emergir, abolem-se as distâncias entre os elementos da natureza, misturam-se o mecânico
com o orgânico; surgem utensílios perigosos, as ferramentas passam a portar um diabólico impulso
de destruição (Kayser, 2003, p. 158). E Kobold, tomando consciência de sua condição, clama:
Os homens estão parados na entrada do caramanchão e combinam um jogo para mais
tarde, o mais velho parece satisfeito, o trabalho está praticamente terminado. O
escorpião já fugiu com seu dardo aceso, as pinças altas no alerta, escondeu-se. A tática.
Um ser odiado odiado odiado e que resiste porque os deuses o inscreveram no Zodíaco,
lá está o Signo do Escorpião o Scorpio e se Deus me der essa mínima forma eu aceito,
quero a ilusão da esperança, quero a ilusão do sonho em qualquer tempo espaço e o
demolidor jovem está aqui junto de mim. Pai nosso que estais no céu com a Constelação
do Escorpião brilhando gloriosa brilhando com todas as suas estrelas e o braço do
homem se levanta e fecho os olhos Seja feita a Vossa vontade e agora a picareta e então
aceito também ser a estrela menor da grande cauda levantada no infinito no infinito
deste céu de outu / bro (Telles, 2009a, p. 108).
Terminando a narrativa desse modo, sem sequer um ponto final, Lygia Fagundes Telles mais
uma vez leva seu interlocutor para o terreno da ambiguidade, deixando com ele as possibilidades
do que poderá ter acontecido; e aqui se aventa que será a continuidade da queda, como se pode
depreender de uma literatura que está longe de mascarar a realidade e que pode levar ao riso,
mas aquele riso possível quando, numa superfície embaçada, alguém pinta um bigode; e outro
alguém, ao aproximar-se, percebe o bigode e o ridículo como ele é pintado naquela face. E então, o
riso torna-se amargo, quando se percebe que a superfície embaçada é um espelho; e a face de que
se ri é a própria face de quem antes ria, sem saber que ria de si mesmo.
Assim são as obras lygianas em que há o riso – o riso com peso. Histórias em que se vê a
autora preocupada “com o texto e a capacidade deste ajudar a desvendar mais camadas do
enigma atávico da condição humana”, como afirmou Caio Fernando Abreu (1996). Histórias
que fazem uma literatura que está longe da inocência. Afinal, a própria Lygia Fagundes Telles
diz: “Não sou inocente (o escritor não é inocente)” (Telles, 2010b, p. 83).
Não é raro encontrarmos, nos contos de L. F. T., personagens cujos mínimos gestos vibram
de maldade. E sendo grande a força impressiva do mal, um leitor menos atento poderia
entrever, na sua contística, uma insistência, mais do que isto, um gesto talvez mórbido em
envolver-se, no plano da ficção, com situações e seres odiosos. Isto, porém, não existe. O
que observamos, do ponto de vista ético, na obra dessa grande contista, é, a par de uma
dolorosa lucidez, uma ternura profunda pelo ser humano e mesmo pelos bichos. Mas
sobretudo pelo ser humano (Lins, 1961, p. 2).
E ternura que se une à esperança quando faz de seu último conto um “conto total”, que traz
em uma personagem e seus dramas, os dramas de protagonistas e personagens que a
antecederam; uma cápsula verbal lançada ao leitor, uma cápsula levando em si, condensada,
uma extensa obra, à espera de ser decifrada, como fica à espera uma garrafa que fosse lançada
ao mar, com um bilhete em seu interior, onde se pudesse ler a frase que as personagens lygianas
de diversos modos dizem – através da crueldade, da mentira, do escamoteamento, da vingança,
do medo, do egoísmo, do desconhecimento, da dor, da insegurança – e que Kobold, como se as
representasse, tivesse a ousadia de explicitamente pronunciar: “EU SOU”.
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