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nomeadamente o quimbundo e o quicongo, exportados de Luanda, que “se
transformou no mais importante porto para o tráfico com o Brasil em geral”
(CASTRO, 1990, p.102). No século XVIII, parece ter havido uma divisão do tráfico
em duas correntes principais. A primeira, de tráfico de escravos de línguas banto,
ligava a região de Angola a Pernambuco e,
principalmente, ao Rio de Janeiro,
maior porto importador de escravos no período, que os repassava para as outras
regiões, sobretudo para Minas Gerais. A segunda rota se estabeleceu a partir da
troca do fumo produzido no Recôncavo Baiano com os escravos embarcados na
Costa da Mina, do grupo linguístico kwa. Assim, “a Bahia não só teve mão-de-
obra escrava em abundância, como manteve quase que o monopólio do tráfico
externo com aquela região africana e do tráfico interno dos denominados escravos
minas para a região dos garimpos, que parece ter absorvido a maioria deles” (CASTRO,
1990, p.106). Essa situação perduraria até a primeira metade do século XIX, quando
o tráfico negreiro foi extinto; só que nesse período os escravos minas importados
pela Bahia e, principalmente, os escravos de línguas bantos importados pelo Rio
de Janeiro eram vendidos para as grandes fazendas de café do Vale do Rio Paraíba e,
em menor número, para as emergentes lavouras cafeeiras do interior paulista.
No panorama geral dos três séculos de tráfico, há um grande predomínio de
escravos trazidos da zona linguística banto. Os escravos de língua banto são
amplamente majoritários
mesmo na Bahia, no século XVII, quando o tráfico negreiro
assume grandes proporções, estimando-se a importação de mais de meio milhão de
indivíduos nesse período (GOULART, 1949 [1975, p.122]). Essa situação só iria se
alterar com o estabelecimento da copiosa rota de tráfico ligando a Costa da Mina à
Bahia, que angariou a essa Província largos contingentes de falantes de línguas
kwa, sobretudo o iorubá. Assim sendo, a grande maioria dos estudiosos é unânime
em dividir a influência africana no Brasil entre uma influência predominantemente
banto na área do Rio de Janeiro (e no Sudeste como um todo) e na área de Pernambuco
para o norte, e uma influência predominantemente iorubá na Bahia.
43
Esse predomínio banto, sobretudo nos séculos XVI e XVII, reflete-se na
formação de línguas gerais africanas no Brasil, de modo que, “nos dois primeiros
séculos, o quicongo e o quimbundo,
seguidas pelo umbundo, foram as línguas
numericamente predominantes na maioria das senzalas ou as de maior prestígio
sociológico” (CASTRO, 1990, p.103). Apesar de os proprietários de escravos
brasileiros evitarem, por razões de segurança, a homogeneidade etnolinguística
43
Mattoso (2003, p.23) explica: "há uma tradição, no entanto difícil de provar, de que, se a Bahia
preferiu sempre importar os sudaneses, Pernambuco tinha predileção pelos bantos e o Rio de
Janeiro selecionava metade de sudaneses e outra metade de bantos".
Português Afro-Brasileiro.pmd
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na sua escravaria,
44
o predomínio dos escravos falantes de línguas bantos, e a
semelhança entre essas línguas, deve ter favorecido o uso corrente, durante todo
o período da escravidão, de línguas francas de base ora quimbundo, ora quicongo,
consoante a predominância de
seus falantes fosse na senzala,
45
fosse nos quilombos,
onde se encontravam africanos, crioulos e mestiços das mais variadas procedências.
46
Portanto, o veículo da socialização dos escravos segregados na senzala, ou foragidos
nos quilombos, pode ter sido, em muitas localidades, não o português precariamente
adquirido para o intercurso com os seus senhores, mas uma língua franca de base
banto.
É certo que línguas de outros grupos linguísticos africanos também
assumiram o estatuto de língua franca no Brasil. A destinação para a região das
minas dos escravos falantes de língua do grupo fongbe importados pela Bahia
resultou na utilização de uma língua
franca de base fon, “que foi atestada, na
primeira metade do século XVIII, na região de Vila Rica” (CASTRO, 1990, p.107).
Essa língua veicular fon deve ter convivido com outras línguas francas de base
quimbundo que provavelmente eram usadas entre os escravos introduzidos pelo
porto do Rio de Janeiro.
Com efeito, o predomínio de escravos falantes de línguas bantos no Sudeste
deve ter propiciado o uso corrente de línguas francas de base quimbundo entre os
escravos de diversas localidades dessa região. Com o tempo, essas línguas foram
caindo em desuso, sendo mantidas apenas em situações especiais e muito restritas,
e substituídas por variedades de português reestruturadas pelos afrodescendentes.
Uma primeira evidência do uso dessas línguas francas africanas foi a descoberta de
Aires da Mata Machado Filho, em 1944, de uma língua veicular de base lexical
banto, na localidade de São João
da Chapada, no Norte de Minas Gerais. Essas
línguas chegaram até os dias atuais, em comunidades rurais negras, que as
conservam como línguas secretas, e também como uma forma de afirmação de sua
44
Cf. Castro (1990, p.101): “[Nas senzalas], se misturavam africanos de diferentes procedências
étnicas a um contingente de indígenas, a fim de evitar rebeliões que pusessem seriamente em
perigo a vida de seus proprietários numericamente inferiorizados e em áreas interioranas, isoladas
e de difícil acesso, sem grandes comunicações umas com as outras”. E Mattoso (2003, p.22): “a
metrópole portuguesa adotou sempre a política de misturar as diferentes etnias africanas, para
impedir a concentração de negros de uma mesma origem em uma só capitania”.
45
Castro (1990, p.101) afirma que “com o domínio banto durante três séculos consecutivos, os
dialetos das senzalas de base banto provavelmente foram os mais numerosos e extensos no
Brasil”.
46
É
assim que, em relação ao Quilombo dos Palmares, o maior quilombo estabelecido no Brasil (no
século XVII, na região de Alagoas), Silva Neto (1951 [1963, p.85]) afirma que: “Acreditamos
[...] que os palmarenses falavam um dialeto africano de tipo banto. A razão é a grande maioria dos
quilombolas eram angolenses [sic]. A tal ponto que à comunidade dos Palmares chamavam
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