blos, estâncias e haciendas de famílias espanholas em tão remotas províncias.
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Mesmo no caso de se conseguirem certos melhoramentos em regiões como
Pimería e Sonora, como teriam eles continuidade sem uma comunicação ma-
rítima, e convivendo com índios tão bárbaros? O veredicto de Venegas-Bur-
riel é simples: a situação da Califórnia torna-a um lugar essencial para a con-
servação e expansão da fé, da cristandade e do domínio espanhol na América
28
.
A Coroa devia ter em mente que a conquista de tão importante região se deu
de forma rápida, desde meados do século XVII, quase sem ajuda do governo,
sob a liderança de missionários jesuítas, que também tomaram a si as tarefas
militares. Como tal sucesso só pode ser explicado pela bondade e vontade de
Deus, Venegas-Burriel lança a pergunta: quantos mais sucessos não adviriam
para a Igreja Católica com a incorporação de novas populações, além do grau
40 de latitude, nos anos seguintes?
Mesmo que fosse apenas para manter as fronteiras atuais, o controle so-
bre os portos da Califórnia é estratégico para o comércio dos espanhóis com
as ilhas Filipinas. Por falta de escala, prossegue ele, inúmeros espanhóis pere-
ceram “nesta larguíssima travessia mesmo em tempos de profunda paz”. Há
sido também bastante comum o apresamento de galeões por corsários ou pi-
ratas inimigos, que se abrigaram na Califórnia
29
.
Acrescente-se a esses motivos antigos — que vêm ocorrendo desde sécu-
los anteriores — os motivos modernos, recentes: os avanços russo e inglês em
direção à costa noroeste da América
30
. Os russos não só têm estendido seu
vastíssimo império em terras asiáticas, como começam a movimentar-se em
direção às partes mais setentrionais do Mar do Sul, civilizando e construindo
colônias em outros países, tendo já desembarcado na América. Por que não
conquistariam a Califórnia se essa fosse abandonada pelos espanhóis? “Quem
hoje reconhece costas e terras, amanhã poderá erigir colônias e estabeleci-
mentos”
31
. Se um dia os ingleses acharem tal passagem, o que os impediria de,
a partir dela, declararem-se donos das províncias do Novo México e Moqui,
dos rios Gila e Colorado, e mesmo da parte setentrional da mesma Califór-
nia, que são as fronteiras de nossas missões e fortes ao norte da América? ‘Os
papéis públicos nos têm anunciado que os ingleses tencionam atravessar des-
de a Índia Oriental o Mar do Sul, e formar plantações e estabelecimentos nas
costas da América’
32
. É sempre importante se ter em mente, adverte-nos, que
várias colônias que no presente pertencem aos ingleses, pertenceram aos es-
panhóis no passado. Daí Venegas-Burriel enfatizar que “(...) em todos os tem-
pos, mas mais ainda no presente, tem sido e é importantíssima a religião ao
Estado, a conquista da miserável Califórnia, em detrimento de outras terras
mais felizes da América”
33
.
O medo que os espanhóis têm de serem invadidos, mesmo em suas par-
tes mais distantes, é muitíssimo bem fundamentado, alerta Venegas-Burriel. O
temor de que os ingleses se estabelecessem nas partes mais remotas de suas co-
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lônias, conectando essas partes com suas demais possessões, por exemplo, pa-
rece ao jesuíta “uma coisa bem provável”. Mas ele próprio não considera a in-
vasão inglesa um perigo iminente. O que ele pretende demonstrar é que a de-
cisão ainda está nas mãos dos espanhóis. Isto demonstra que Venegas-Burriel
parecia conhecer bem sua audiência, particularmente os receios da Coroa em
relação às suas possessões ultramarinas que rodeavam a corte dos Bourbons.
De fato, em um contexto no qual a Espanha perdia controle sobre suas colô-
nias no Oriente e ao sul do continente americano, não parecia muito promis-
sora a perspectiva de convencer Felipe V, da dinastia dos Bourbons, sobre o es-
tabelecimento de novos portos e consolidação dos antigos na Califórnia. O
argumento de Venegas-Burriel é no sentido de garantir a consolidação do im-
pério espanhol em região reconhecidamente problemática, afinando-se com a
política de expansão territorial, agora em direção ao norte, garantindo não
apenas a continuidade do comércio com as Filipinas como construindo um
obstáculo para impedir o avanço de potências rivais, européias ou asiáticas.
A defesa de Clavijero sobre a importância estratégica da ocupação da Ca-
lifórnia pela Coroa espanhola é semelhante à de Venegas, ainda que os dois
jesuítas difiram no entusiasmo pela Califórnia e por seus habitantes. Ambos
estão empenhados em evitar que outros povos aí se estabeleçam, pela utilida-
de dos portos californianos para o comércio com as Filipinas, enfim, visando
à permanência da Califórnia como parte do império espanhol
34
. Para tal, tan-
to Clavijero quanto Venegas tentam provar a importância estratégica da Cali-
fórnia para a Coroa espanhola. Clavijero inclusive enfatiza, em seu relato his-
tórico, como tal fato veio sendo reconhecido gradualmente pelos próprios
representantes reais. Sem deixar de enaltecer a ação missionária jesuítica, am-
bos mencionam, às vezes com detalhes, as dificuldades enfrentadas pelos mis-
sionários em função das rebeliões indígenas. Se isso sugere uma abordagem
crítica do empreendimento jesuíta, induz o leitor a valorizar ainda mais o em-
preendimento e seus objetivos altruístas. Ao aumentar a força e resistência do
inimigo, era inevitável que crescesse também o mérito da vitória do trabalho
dos jesuítas convertendo e civilizando os índios.
Clavijero vincula a história das missões jesuíticas na Califórnia à política
real em relação à região, realçando as novas ordens do rei católico em favor
dos jesuítas na região, as perigosas viagens feitas por missionários inacianos
pelo rio Colorado, as pretensões extravagantes e as desordens dos pericúes.
Detém-se também no elogio de alguns homens beneméritos da Califórnia,
bem como na fundação e supressão de missões, concluindo com um balanço
da situação do cristianismo na região por volta de 1767, do sistema de gover-
no das missões e da expulsão dos jesuítas. Segundo Clavijero, a resposta real
à Audiência do México autorizando a permissão aos padres Salvatierra e Ki-
no para converter os índios da Califórnia só veio quando pôde certificar-se
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de que “nada pediam do erário real”. Permitiu-lhes também o rei que, “às suas
próprias expensas, pudessem levar soldados para a sua segurança, nomear o
capitão e governador para administração da justiça e licenciar qualquer ofi-
cial ou soldado sempre que julgarem necessário”
35
. Admira-se mesmo com o
fato de, entre tantos contratempos e perigos, os missionários jesuítas não te-
rem se dividido. A perda de algumas missões por parte dos jesuítas deveu-se
ao excessivo número de colonos que chegava em uma região onde os víveres
não eram suficientes e à falta de apoio e proteção por parte do governo. Isso
tudo de acordo com o relato do pe. Salvatierra, e nas repetidas cartas escritas
ao vice-rei da Nova Espanha expondo o estado da colônia, os grandes gastos
e a impossibilidade de pagar aos soldados com lismonas cada vez mais escas-
sas e tardias. Implorava, por fim, a proteção do rei
36
.
Mesmo com o crescente afastamento dos jesuítas de suas missões, em
1735 o pe. Guillen escreveu ao arcebispo vice-rei sobre o lamentável estado
do cristianismo na Califórnia. Vendo que não surtiu qualquer efeito, resolveu
escrever diretamente ao rei. Seguiu-se à sua a carta do pe. Bravo alertando so-
bre o estado de miséria em que se encontravam as missões, que era em gran-
de parte responsável pelas recentes rebeliões. Embora bem mais satisfatórios
que os do pe. Guillen, os mantimentos enviados da Espanha estiveram muito
aquém das necessidades, mas ainda assim conseguiu-se restabelecer certa or-
dem nas províncias setentrionais com a ajuda dos neófitos. E nelas foi enor-
me, segundo Clavijero, o clamor pelo retorno dos jesuítas:
Entraram em Loreto em uma procissão muito numerosa e bem ordenada, le-
vando nos ombros todas as cruzes das missões; pediram com lágrimas que não
os abandonassem à perdição os missionários que os haviam batizado e educado
na vida cristã; protestaram que queriam viver e morrer na religião de Jesus Cris-
to que haviam abraçado; disseram que não era justo que todos sofressem a pena
merecida por uns poucos descontentes, os quais estavam prontos a entregar ao
capitão governador para que fossem castigados
37
.
Em suma, a vinculação entre o espiritual e o temporal fica evidenciada
nos projetos jesuíticos visando a dar continuidade às missões e ao império
espanhol na Califórnia. Informa-nos Clavijero que, durante a “Guerra da Ca-
lifórnia”, o rei, movido pelas representações dos jesuítas, ordenou que se esta-
belecesse, na parte austral da Califórnia, o projetado presídio para a seguran-
ça das missões. A condição, contudo, era que o capitão e os soldados não
deveriam estar subordinados nem aos missionários nem ao capitão de Lore-
to, mas diretamente ao vice-rei. Tal atitude expressa o centralismo orientador
das Reformas Bourbônicas. Mas o capitão nomeado, dom Esteván Rodriguez
Lorenzo, “acostumado a respeitar Salvatierra, Ugarte e Píccolo, deferia com
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mais freqüência os ditames dos missionários do que queriam os inimigos dos
jesuítas”. De forma que a independência que se quis instaurar entre o tempo-
ral e o espiritual não durou mais que um ano e meio, devido às desordens que
ocasionou. O vice-rei se viu forçado, então, a retornar às antigas disposições,
que proibiam que se alterasse a forma de governo estabelecida na Califórnia
pelo pe. Salvatierra. Do que conclui Clavijero: “Essa revogação de suas pró-
prias ordens por um vice-rei que não era a favor dos jesuítas, basta para justi-
ficar o sistema de governo estabelecido pelo pe. Salvatierra na Califórnia”
38
.
Clavijero finaliza o livro lamentando ser esse o estado dos povos e dos
jesuítas na Califórnia quando veio a ordem de expulsão em 25 de junho de
1767. Pois, quando os missionários se afastaram das missões, foram nelas
mantidos os soldados para manter a ordem e impedir a deserção dos neófi-
tos, enquanto chegavam os padres franciscanos. Sobre a chegada e estadia dos
franciscanos nas missões fundadas pelos jesuítas, os documentos aos quais
ele teve acesso foram cartas do México escritas naquele período, que atestam
que os novos missionários viram com seus próprios olhos que a Califórnia
não era como esperavam. Muitos deles abandonaram as missões e a penínsu-
la e voltaram a seus conventos, publicando por todas as partes que aquele país
era inabitável e que os jesuítas “deviam agradecer muito ao rei por ter-lhes li-
bertado daquela grande miséria”
39
. Depois da desistência dos franciscanos fo-
ram enviados à península da Califórnia religiosos dominicanos, sobre cuja
obra Clavijero declara não dispor de informações. Deseja, contudo, que se
empenhem eficazmente em “conservar a fé de Jesus Cristo entre os califor-
nianos e propagá-la entre os muitíssimos povos do Norte, afim de que todos
conheçam, adorem e amem o seu Criador”
40
.
4. C
ONCLUSÃO
Embora ambos estejam envolvidos na causa de opor-se à campanha anti-
jesuítica então em curso na Europa, e principalmente nos países ibéricos, a
relação afetiva de Clavijero e Venegas-Burriel com a Califórnia é diferente.
Venegas-Burriel preocupa-se com a manutenção da política imperial de pro-
teção das missões jesuíticas na Califórnia, e apresenta as incursões inglesa e
russa no noroeste da América do Norte como eventos que poderiam pôr em
risco um empreendimento tão custoso aos jesuítas, ainda que altamente be-
néfico à Coroa, que lucra com ele mais do investe. Não afirma que o clima da
Califórnia seja perfeito, mas sem dúvida aposta na possibilidade de intensifi-
cação de seu povoamento — até por razões estratégicas — e de conversão de
tribos indígenas até então arredias. Clavijero, talvez por estar escrevendo al-
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guns anos depois, parece-me menos preocupado com tais aspectos, e espe-
cialmente bem menos seguro quanto ao sucesso do empreendimento.
Nos dois livros é possível visualizar — através da história do empreendi-
mento jesuítico na Califórnia —, uma parte da história da complicada rela-
ção entre a Cia. de Jesus e o Estado espanhol no século XVIII: de complemen-
taridade até meados do século, e de disputa, mais explícita ou velada, a partir
de 1750. Os dois autores enfatizam a especificidade do caso californiano no
interior do Vice-Reino da Nova Espanha, onde a Coroa ainda necessitava dos
jesuítas em um período no qual a presença dos mesmos era extremamente in-
cômoda na Espanha ou em regiões da Nova Espanha. Escrevendo em um mo-
mento bastante delicado no que concerne às relações dos jesuítas com a Co-
roa espanhola, então implementando as reformas bourbônicas, claramente
antijesuíticas, Venegas-Burriel pisa em ovos. Faz questão de deixar clara sua
situação de servidor zeloso da Coroa, ao mesmo tempo que profundo admi-
rador do papel missionário dos jesuítas no norte da Nova Espanha e em ou-
tras regiões da América. Enquanto os espanhóis confrontam-se com tortuo-
sos questionamentos sobre as causas do “atraso da Espanha” — grande parte
deles atribuindo-os aos jesuítas —, Venegas-Burriel oferece uma avaliação di-
ferente, porque positiva. Considera estar a Espanha na mesma situação de ou-
tras nações européias, nem mais atrasada nem mais evoluída. Os espanhóis
não estariam desinformados sobre a natureza das doenças políticas que gra-
dualmente os consumiam, ou ignorantes dos remédios a serem ingeridos. O
que eles queriam era o poder de aplicá-los. Venegas-Burriel considerava que a
possibilidade de restaurar o vigor da Monarquia espanhola residia na reativa-
ção da circulação de bens (comércio) através de todas as partes do império.
Chama a atenção, portanto, a ênfase do autor na sua situação de servi-
dor leal do rei da Espanha. E não fala apenas em seu nome, senão como re-
presentante das missões jesuíticas então em pleno desenvolvimento na Cali-
fórnia, mantendo e expandindo as possessões do império espanhol, e ao
mesmo tempo protegendo o dito império das ameaças russa e inglesa. Seu
apoio à expansão do império implica, porém, a sugestão de medidas econô-
micas, políticas e missionárias destoantes daquelas prognosticadas pelas re-
formas “iluministas” de Carlos III. O autor não explicita qualquer referência
ao medo, então disseminado na corte espanhola, em relação ao estabeleci-
mento de um império jesuíta na América. Mas parece estar respondendo de
certa forma a ele ao centrar seu argumento na comunidade de interesses en-
tre a Cia. de Jesus e o império espanhol. Dessa forma, Venegas-Burriel e ou-
tros jesuítas no noroeste da Nova Espanha, embora contrários à política da
Coroa espanhola, fazem a defesa do império espanhol contra as disputas fron-
teiriças entre ingleses e russos que o ameaçam exatamente na região da Cali-
fórnia. O que parece diferente do que estava acontecendo no Paraguai no mes-
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mo período, onde a disputa fronteiriça entre Portugal e Espanha confronta
jesuíta com jesuíta. Em tais circunstâncias, o ultramontanismo da Cia. de Je-
sus não pôde fazer concessões à política nacionalista e de afirmação da sobe-
rania nacional dos Bourbons, como foi possível na Califórnia, onde espreita
o “inimigo externo” russo ou inglês.
Clavijero tem uma abordagem semelhante do problema, mas a forma co-
mo lida com ele demonstra uma superioridade historiográfica significativa
em relação a Venegas. Sua preocupação metodológica — especialmente no
que se refere ao trato com as fontes — possibilita-nos melhor visualizar, em
seus escritos, a conexão entre as mudanças na política imperial em relação ao
Novo Mundo em geral e aos jesuítas em particular, com um relato da situa-
ção do ponto de vista de um jesuíta, mesmo não tendo ele sido um missioná-
rio na Califórnia. O importante é que, baseando-se em relatos de seus colegas
— inclusive Venegas —, de alguns viajantes e em cédulas reais expedidas en-
tre 1730 e 1767, consegue oferecer ao leitor uma noção de conjunto não fa-
cilmente identificável nas notícias sobre a Califórnia até então publicadas, in-
clusive a de Venegas. Clavijero tem a seu favor o tempo, que lhe possibilita ver
com mais clareza, mas principalmente a estruturação e organização das idéias,
nas quais se evidencia um pertencimento muito mais evidente de Clavijero
ao iluminismo, ainda que combinando ecleticamente o teológico (espiritual)
com o temporal. Isso estava também presente em Venegas e em outros jesuí-
tas setecentistas, mas não com a clareza e metodologia com que aparece em
Clavijero.
NOTAS
1
Este trabalho foi apresentado nas IX Jornadas sobre missões jesuíticas na PUC-SP, em ou-
tubro de 2002, como parte dos resultados da pesquisa de pós-doutorado na Latin Ameri-
can Center, da University of Maryland-College Park, USA, para a qual contei com uma ge-
nerosa bolsa da Capes.
2
CHEVALIER, François. “The formation of the Jesuit Wealth”. In MÖRNER, Magnus (ed.).
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