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Revista Baiana
de Saúde Pública
Nas narrativas, percebe-se uma relação com as formas do corpo e o Candomblé.
“Vou logo dizer, numa roda de samba, quando tá todo mundo vestido, as gordinhas ressaem mais
até. Porque a roupa combina mais, cai melhor a roupa.” (Baiana Helena). Assim, o conhecimento
do corpo, das percepções sensoriais, para o Candomblé, é um aspecto importante para a iniciação,
e a possibilidade de dançar no rito público desta religião.
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A gestualidade e a dança podem ser
entendidas como uma linguagem ou como outra possibilidade da palavra, pois é o corpo que fala
ao grupo social.
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O corpo volumoso da baiana e os movimentos de suas mãos e braços apresentam-se
de forma inerente ao trabalho, não mais como um instrumento apenas para a execução das tarefas.
A movimentação do seu corpo na batida da massa e na fritura dos acarajés remete a um ritual
presente nas festas do Terreiro que é a dança dos Orixás. Com o corpo movimentando de forma
cadenciada, ombros levemente arqueados, seus braços seguram forte a colher de pau, como se
segurasse o chicote de Iansã. Seus braços levantam e abaixam a colher na massa, em um movimento
circular de fora para dentro, como quem puxa o alimento para si. Ao formar o bolinho com a colher
e colocá-lo em pequenas quantidades nos tachos para fritar, as baianas realizam mais um
movimento, agora lateralizado. Com os braços arqueados, na altura dos ombros, estas mulheres
afastam e aproximam seus membros do corpo em um movimento típico da dança africana.
Um momento de naturalização das relações com o sagrado verifica-se ao colocar a
panela no meio de suas pernas. A fazer isto, estas mulheres estabelecem um elo com a
fertilidade representada por cada bolinho retirado do seu ventre. Assim com sua mãe Iansã. Esse
ritual encerra-se na venda do acarajé para o cliente, sempre aberto ou furado, nunca fechado,
com o intuito de impedir que o utilizem de forma prejudicial à baiana, uma vez que a
sacralização com o divino deve ocorrer da mãe para a filha. É o sagrado e o profano que se
encontram no universo do acarajé.
V – “Todo mundo acha que baiana é gorda porque come acarajé o tempo todo”: as
práticas alimentares no tabuleiro
O trabalho da baiana envolve muitas atividades e isto requer dedicação. Devido a
isto, a baiana prioriza o seu trabalho em detrimento de outras atividades como, por exemplo, o
lazer, a alimentação e o cuidado com o corpo. Em muitas narrativas foi referido que a quantidade
de trabalho que realizam é muito grande, impossibilitando a ida a serviços de lazer, como teatro,
cinema, praia, e também a prática de atividade física, como caminhadas, pois o tempo que se
apresenta é para o trabalho e para o descanso.
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Adicionado à escravização no tempo, estas trabalhadoras não apresentam uma rotina
alimentar, principalmente em seu ambiente de trabalho. Em sua maioria, elas não se alimentam
enquanto estão trabalhando, pois referem não ter tempo para isto. “Aqui eu não como, porque eu
não sinto fome por causa das coisas que eu faço [...] Uma vez na vida e só como metade [o
acarajé] porque não desce, enjoa.” (Baiana Sara). Além disso, o acesso aos alimentos pode
conduzir os grupos menos favorecidos a diferentes arranjos de sobrevivência. Nessa perspectiva, as
estratégias de consumo alimentar são caracterizadas pela seleção de gêneros básicos e de alta
densidade calórica, como as gorduras e os açúcares, por meio dos quais os indivíduos conseguem
as calorias necessárias para reproduzir a força de trabalho de que necessitam.
Os alimentos que se fazem presentes em seu ambiente de trabalho são os que são
vendidos por elas e os que são vendidos nas ruas pelos vendedores ambulantes, como beiju de
tapioca, milho verde cozido, amendoim. Apesar de algumas narrativas referirem a aquisição
esporádica desses alimentos, na observação participante não foi percebido esse consumo no
ambiente de trabalho.
A despeito da crença existente no senso comum de que as baianas engordam
devido ao alto consumo dos bolinhos de feijão, nas observações realizadas nas ruas da cidade não
foi identificado nenhum consumo de acarajé pelas baianas. Segundo algumas narrativas, o ato de
comer acarajé ocorre mais na “prova” da massa, para avaliar a quantidade de tempero e a
qualidade do produto; o contato direto e diário com o acarajé acaba por produzir uma sensação de
enjoo: “Muitas pessoas acham que as baianas engordam porque comem o acarajé todos os dias,
mas a gente não come o acarajé todo dia não, porque a gente enjoa.” (Baiana Isadora).
Em tempos do discurso sobre alimentação saudável, essas mulheres não identificam
que este “movimento” pode ser prejudicial às suas vendas. Elas acreditam que o acarajé, quer
dizer, as comidas de azeite ou comidas baianas, apesar de serem vistas como alimentos calóricos,
pesados, não deixam de ser consumidas pela população. Independentes da classe social, crença,
estado de saúde, as comidas de tabuleiro sempre serão vendidas, pois fazem parte da história da
cidade do Salvador. Já existem baianas que, reconhecendo a natureza calórica de seus produtos,
utilizam manobras para tornar mais light as suas preparações:
“Eu quero o melhor para o meu cliente. Se eu não faço pra mim também não vou
querer para ele. O meu camarão eu não frito mais no azeite por muito tempo. O
vatapá e o caruru, eu coloco o azeite quando eles já estão quase prontos. No abará
só utilizo a flor do azeite, pois é mais saudável. E o meu azeite que frito o acarajé,
eu troco todo dia. Utilizo 75 litros na semana.” (Baiana Margô).
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As constatações deste estudo permitiram concluir-se que a baiana de acarajé, um
ícone da cidade do Salvador, tem um trabalho desgastante, que lhe traz problemas de saúde,
agravados com o sobrepeso ou a obesidade da maioria das trabalhadoras artesanais. As atividades
demandadas pelo trabalho árduo produzem uma fadiga recorrente que se agrava na repetição dos
movimentos gerados no processo de produção dos bolinhos.
Apesar do reconhecimento como Patrimônio Cultural Imaterial, a profissão não
obteve melhoras em relação às condições de trabalho, uma vez que a atividade exige esforços
repetitivos que resultam em dores de coluna, nas pernas e nos braços. O significado de ser baiana
em Salvador, porém, envolve um conjunto de possibilidades permeadas pela tradição,
ancestralidade, ritual e também modo de subsistência.
O corpo da baiana é seu instrumento de representação no mundo sagrado e
profano, uma vez que é através dele que a sua santidade se manifesta, como num transe. Neste
sentido, a baiana traz para as ruas de Salvador esse ritual de comidas e objetos sagrados, além das
roupas e da movimentação do corpo como numa dança.
Não obstante toda a ancestralidade e tradição presente nessa trabalhadora artesanal
(ou categoria profissional), é preciso que haja uma atenção especial para elas, uma vez já existe
um precedente de sintomas que se manifestam nas baianas e podem estar sendo silenciados ou
despercebidos pelos serviços de saúde e pela Previdência Social.
Diante do exposto, fica evidente a necessidade de estudos mais detalhados sobre as
condições de trabalho e riscos presentes nesse espaço do acarajé, tão disputado e polêmico.
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