QUEM CONTA A HISTÓRIA É QUEM DÁ O TOM OU NARRATIVAS
SOBRE AS BONECAS ABAYOMI: ANCESTRALIDADE E RESISTÊNCIA DAS
MULHERES NEGRAS OU ROMANTIZAÇÃO DA ESCRAVIDÃO?
Maria Cristina do Nascimento
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Rede de Mulheres Negras de Pernambuco
INTRODUÇÃO
Boneca/o é reprodução do humano, apresenta significação ontológica, faz parte
da nossa necessidade nos re/conhecermos, exerce função lúdica e de exercitar a
alteridade, brincar de boneca/casinha é exercício de vivência coletiva e de experienciar
troca de papeis, também funciona para perceber a organização societal e construir a
sociabilidade. Daí a importância e a força do lugar da representatividade das bonecas
negras para a autoimagem de negras e negros.
As bonecas têm sua presença registrada desde as mais antigas civilizações, como
as ushabts do Egito Antigo às barbies e tantas outras da atualidade (COSTA et, 2016).
Fazer bonecas de pano (ou bruxinhas) para as meninas
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brincarem é comum em
toda América Africana, mas nem sempre essas bonecas têm tonalidades da cor da pele
negra, na minha infância, por exemplo, não me recordo de vê-as pretas, maioria das
vezes, eram feitas de tecido branco, ou cor rosa bem clarinho.
No sul dos Estados Unidos, segundo o historiador Walter Passos (2016), na
época da escravidão, as mulheres negras confeccionavam bonecas de duas cabeças
juntamente com um conjunto de braços brancos (Topsy-turvy doll), ou seja, em vez de
pernas tinham outra, cabeça e braços pretos, que eram escondidos embaixo da saia da
boneca, pois os senhores de escravizadas/os não queriam que as crianças pretas
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Mestra em Ciências da Religião, artivista, professora da Rede de Ensino do Município de Recife,
bonequeira e atriz. contatos:
cristina.nascimento@prof.educ.rec.br
ou
crisloucas@outlook.com
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A reflexão sobre a questão de gênero: “brinquedo de menina, brinquedo de menino ou brinquedo de
brincar?’ é imperiosa sobre esse lugar destinado às mulheres como cuidadoras e mantenedora do
doméstico e das mulheres negras como empregadas domésticas no imaginário e prática colonizadora que
estrutura a sociedade brasileira, racista, classista e sexista. A perspectiva filosófica africana é da
ludicidade e do compromisso coletivo com a educação das crianças, como afirma um provérbio africano:
“é preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança”.
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tivessem bonecas parecidas com elas, provavelmente, porque sinalizavam uma ideia de
poder ser gente e se ver: "Quando o senhor de escravizados ia embora, as crianças
tinham o lado preto, mas, quando o senhor de escravizados estava por perto, elas tinham
o lado branco” (PASSOS, 2016). Portanto, as Topsy-turvy doll eram estratégias das
mulheres negras, de possibilitar a partir da ludicidade, que suas crianças se
re/conhecessem em sua identidade negra afro-americana.
Ao abordar os aspectos culturais africanos e afro-brasileiros é impossível não
falar da escravidão, mas é indispensável que o enfoque a ser dado seja o da resistência
ancestral e seus princípios civilizatórios, com as interligações entre o ser/fazer/refletir-
se e da poética corpo/movimento/ancestralidade, uma vez que:
O navio trouxe corpos esfarrapados; o mercado negociou peças; coisas
faziam todo tipo de trabalho; pessoas, porém, recriavam suas culturas
e se sentiam gentes, por inteiro. De tantas culturas, o trans-atlântico
ficaria repleto e as espalhou em terras firmes e foram tantas que se
encontraram, se multiplicaram e garantiram a humanidade frente a
tanta violência. O domingo é o dia de folga “como melhor lhe apraz”,
isto era consenso entre os senhores no Brasil. Para a negrada era dia
de organização: dançar, tocar, fazer política, avançar. Por isso o
congo, a congada, o tambor de mina, o batuque, a irmandade, o jongo,
o samba, o afoxé, a capoeira, o candomblé, o maracatu. Ou seja, essas
manifestações são recriações transplantadas dentro das suas
possibilidades (PINHEIRO, 2007, p. 7).
É preciso estar atentas/os para não cairmos nas armadilhas do enfoque cultural,
das manifestações artísticas, destituídas da complexidade filosófica do ser/fazer
africano, do ser afro-brasileiro. Significa que, é preciso reconhecer, dentre tantos outros
símbolos e expressões, que o Maracatu é resistência dessa travessia do Atlântico. Que é
arraigado de religiosidade, que possui uma boneca como protetora, chamada Calunga,
que é a anfitriã dessa nação de pretas e pretos que resistiram. Inaldete Pinheiro de
Andrade (2007, p. 17), assim nos apresenta a relação entre uma boneca-memória-
ancestralidade:
A Calunga é a boneca sagrada do maracatu. É a embaixadora, abre o
desfile do cortejo. Um totem que representa o espírito do maracatu e
corporifica o elo com a cultura africana original, numa ponte entre as
pessoas e o sagrado. Do banto, Kalunga encerra a ideia de grandeza,
imensidão, designando Deus, o Mar, a Morte.
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Historicamente, as bonecas têm presença marcante em manifestações culturais e
religiosas
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do povo negro, a historiografia nos mostra que, muito antes delas
constituírem-se brinquedos para as crianças, as bonecas faziam e fazem parte de
ritualísticas religiosas (SOUZA, 2010, p.27-28).