parte obtida é ainda uma linha, uma linha indivisível ou átomo linha. Se a resposta é afirmativa, a
objeção é imediata: por que, então, esta pequeníssima linha não vai seguir sendo divisível? Tal como no
caso do átomo físico, não há nada que se oponha a isto. E da mesma forma que no caso do atomismo
físico, se incorre em uma contradição, a menos que não se queira admitir que uma linha possa dividir-se
17
BOHR, 1995, p. 12-13.
18
ARISTÓTELES apud DUVERNOY, 1993, p. 34.
1. Do átomo grego ao átomo de Dalton: um percurso através da história da física e da química
18
infinitamente. Mas neste caso o indivisível – componente último da linha – não pode ser, por motivos
evidentes, uma linha.
19
O ponto, uma nova entidade, é esse indivisível, sendo uma linha uma sucessão infinita des-
ses elementos. Então, as dificuldades em se conceber um componente último da matéria seriam
incontornáveis, pois essa célula não poderia ser nada material.
Mesmo frente às restrições da filosofia natural aristotélica que, hegemônica, estrutura-se
como um poderoso corpo de conhecimentos que não admite a existência do vazio e que atribui
diferentes realidades físicas aos domínios terrestre e celeste (o primeiro corruptível e sujeito a
todo tipo de transformação; o último inalterável e perfeito, em função do elemento que compõe
todas as coisas aí existentes – o éter), o atomismo é aceito e adotado por muitos filósofos, como
Epicuro (341-270 a.C).
Epicuro diverge de Demócrito ao dotar os átomos de peso, entendido como uma ‘pressão’
exercida pela matéria de cima para baixo. Com isso, os epicuristas podem explicar porque
algumas coisas pesam mais do que outras, com as mesmas dimensões. Como o vazio não tem
peso, o que é mais leve possui mais espaço e menos matéria em seu interior; já o mais pesado tem
mais matéria e menos espaço vazio, internamente.
O peso explica o fenômeno da queda. Ele privilegia uma direção (a vertical) e um sentido
(de cima para baixo), polarizando o espaço. Isso não é considerado no atomismo de Demócrito,
para quem os átomos se movimentam em um espaço homogêneo (igual em qualquer de suas par-
tes) e isotrópico (sem direções preferenciais). Como não há interação à distância entre os átomos,
somente processos envolvendo a colisão entre eles são capazes de alterar as suas configurações
(ou estados, como vai-se dizer a partir de René Descartes (1596-1650) e Isaac Newton (1642-
1727)) de repouso e de movimento. É, de fato, apenas com a força de atração gravitacional
newtoniana que a noção de um espaço isotrópico vai se harmonizar com a de sua polarização se-
gundo determinadas direções.
20
As idéias difundidas pelos atomistas extrapolam os domínios restritos do conhecimento ci-
entífico, apresentando impactos significativos no campo social, político e econômico. Assim, é
com base no atomismo que Epicuro nega uma série de conceitos e valores mantidos pelos
estóicos
21
19
FESTA, 2001, p. 81-96.
, como a imortalidade da alma, as crenças em adivinhações e em presságios. Para
Epicuro, o estudo dos fenômenos naturais podia libertar os humanos das superstições e de toda a
forma de medo.
20
DUVERNOY, 1993, p. 49.
21
Fundado por Zenão de Cício (336-264 a.C.), o estoicismo é doutrina contemporânea e rival do epicurismo. Por
exemplo, os estóicos acreditavam na existência de um “fluido com propriedades análogas à mistura de ar e fogo”, o
pneuma, “que penetra todos os corpos e preenche os espaços entre eles”. A cosmologia estóica não admite a
existência do vazio no Universo dos fenômenos naturais. “A rigor, há vazio fora do mundo, já que concebiam o
mundo – enquanto conjunto de corpos – como finito e envolto por um vazio que se estende indefinidamente.”
(ABRANTES, 1990)
Do átomo grego ao átomo de Bohr
19
Conforme ressalta o historiador S. Sambursky
22
As conjeturas dos principais artífices da estrutura corpuscular da matéria, que geram expli-
cações plausíveis, ao menos em tese, para uma ampla gama de fenômenos físicos, compõem uma
visão de mundo que concebe o Universo, como um todo, constituído de átomos e de vazio.
, o estudo das nuances e dos contrastes do
atomismo de Leucipo, Demócrito e Epicuro constituem um valioso indicativo do desenvolvi-
mento interno de uma teoria científica. Contudo, o núcleo duro (os pressupostos fundamentais) da
teoria atômica é, essencialmente, o mesmo para os atomistas em geral.
O que se poderia designar por lei da conservação da matéria, (“nada pode ser criado do
nada e nem qualquer coisa pode ser destruída ou reduzida a nada”, como afirma Demócrito) res-
salta a indestrutibilidade de seu componente fundamental, em clara oposição aos que advogam a
divisibilidade infinita das coisas.
O Universo é infinito em extensão, como é infinito o número de átomos. Essas duas com-
plexas noções comportam duas hipóteses mutuamente excludentes: a de um Universo cheio, com
os átomos ocupando todo o espaço disponível, e a de um Universo com um espaço excedente em
relação à matéria que ele encerra. É por esta última que optam os que simpatizam com a essência
das idéias de Leucipo, Demócrito e Epicuro.
O atomismo é imortalizado no De rerum natura do poeta romano Tito Lucrécio Caro (95-
55 a.C.). Redigido de forma didática, ele é um verdadeiro tratado de física.
23
Mas o poema de Lucrécio, à luz da filosofia epicúrea, transcende à ciência física. O ato-
mismo enseja aos leitores a idéia de que todos os fenômenos possuem uma causa física, centrada
exclusivamente na matéria e no movimento. Todas as coisas são constituídas por átomos,
inclusive a alma. A morte é simples desagregação, dispersão da matéria de um sistema complexo
de átomos, como a de um objeto que se fragmenta em infindáveis partes. A eternidade pertence
ao átomo e não à alma.
Por que, então, temer a morte, se ela é parte de um processo natural? Ou o castigo eterno
ao espírito rebelde, independente, que não admite a intervenção de deuses nos fenômenos naturais
e na vida dos homens? As trevas a temer são as da ignorância, que assola os espíritos aco-
modados. Não são os “raios do sol, nem os dardos luminosos do dia” que vão dissipá-las, “mas os
fenômenos da natureza e sua explicação”.
Toda a natureza é constituída por duas coisas: existem os átomos e existe o vazio em que se acham
colocados
.
24
Aos que se mostram céticos quanto à existência desse constituinte elementar da matéria,
por não ser detectado pela visão humana, Lucrécio faz uso de uma analogia com o vento, para
22
SAMBURSKY, 1990, p. 132.
23
LUCRÉCIO CARO, 1962.
24
Id, p. 63.
1. Do átomo grego ao átomo de Dalton: um percurso através da história da física e da química
20
mostrar que este também possui partículas que não podem ser vistas, mas das quais ninguém nega
a existência, pela ação muitas vezes destruidora que exibem.
Talvez, no entanto, você esteja colocando em dúvida as minhas palavras, porque esses meus átomos não
são visíveis a olho nu. Considere, portanto, a prova maior dos corpos cuja existência você há de reconhe-
cer, embora não possam ser vistos. Primeiro, o vento, quando a sua força aumenta, açoita as ondas, põe a
pique barcos a vela e dispersa formações de nuvens. Às vezes assolando as planícies com intensidade
devastadora, deixa por elas espalhadas enormes árvores e bombardeia os picos montanhosos com rajadas
que derrubam florestas. Assim é o vento em sua fúria, quando dá seu grito de guerra trazendo nele uma
louca ameaça. Sem dúvida, portanto, devem haver partículas invisíveis de vento que varrem o mar, a terra
e as nuvens no céu, investindo contra eles e os turbilhonando em um impetuoso tormento. Quanto ao
modo como fluem e à devastação que causam, eles em nada diferem de uma enchente torrencial quando a
água desce repentinamente pelas encostas das montanhas causando inundação, provocada por pesadas
chuvas, e amontoa escombros das florestas e árvores inteiras. Embora mole por natureza, o choque
repentino da água que se aproxima é maior do que até a mais robusta das pontes pode agüentar, tão
furiosa é a força com que a túrbida torrente tempestuosa se lança contra os seus pilares. Com um pode-
roso rugido, abate-os, rolando enormes pedras sob suas ondas e desprezando todo obstáculo que encontra
pelo caminho. Esse, portanto, deve ser também o movimento das rajadas de vento. Quando elas vêm
avançando em seu curso como um rio impetuoso, empurram os obstáculos que encontram pela frente e os
atingem com repetidos golpes; e, às vezes, redemoinhando repetidamente, arrancam-nos e os vão levando
em um veloz vórtice circular. Eis, portanto, prova em cima de prova de que os ventos possuem corpos
invisíveis, visto que em suas ações e em seu comportamento rivalizam com os rios, cujos corpos são
plenamente visíveis
.
25
Por outro lado, se não houvesse o vazio (entre os corpos e dentro deles) tudo seria inteira-
mente sólido, nada poderia ser alterado, fracionado, movido. Afinal, os sons não atravessam pare-
des? Como poderiam se movimentar os peixes se não existissem espaços vazios na água? A
dureza do ouro e dos outros metais não cede pelo calor que neles se infiltra, quando se
liquefazem? Não se tornam úmidas as roupas à beira da costa, onde se quebram as ondas? A
umidade que deixa um corpo, sob o efeito do calor, não é mais uma prova da existência de
espaços vazios no interior da matéria? Os exemplos se multiplicam e parecem suficientes à razão.
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