1. Do átomo grego ao átomo de Dalton: um percurso através da história da física e da química
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história recorrente da filosofia de Gaston Bachelard (1884-1962)
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As origens do atomismo estão na fase áurea do conhecimento antigo. Mas o átomo de
Dalton não é uma extensão do átomo grego, ele é distinto, pois as bases conceituais e epistemoló-
gicas nas quais se estrutura são diferentes das de seu predecessor.
, isto é, de uma história julgada
criticamente a partir da ciência atual, permite não apenas avaliar como surgem e são
modificadas
ou descartadas essas estruturas e concepções teóricas, mas também entender onde se encontram
as raízes históricas de determinados conceitos.
As proposições de Demócrito, bem como as de Leucipo e Epicuro, não compõem uma teoria atômica,
nem tampouco visam explicações para as transformações químicas. Suas concepções de mundo são bem
diversas das concepções dos físicos modernos. Seus pensamentos constituem uma filosofia que procura
explicar a natureza, a partir da inserção do homem nessa natureza: seus propósitos e seus valores. Nesse
sentido, as teorias de Dalton
não são conseqüências das teorias de Demócrito. Diferentemente, Dalton
tinha por objetivo construir um modelo de átomo capaz de explicar as relações de massa nas
transformações químicas
.
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O átomo de Dalton reflete a ciência de seu tempo. Da definição operacional e provisória do
conceito de substância indivisível, de Boyle e Lavoisier, chega-se, através de Dalton, a certeza
dos componentes últimos da matéria, das células básicas da combinação química; a determinação
dos pesos atômicos (segundo um padrão) impõe-se como uma tarefa exeqüível face as técnicas de
análise e síntese química disponíveis; a estabilidade dos sistemas atômicos é
concebida em
termos dinâmicos e, nessa perspectiva, as partículas de calor são essenciais na relação das forças
envolvidas; a representação simbólica de Dalton expõe a suposta organização das estruturas
fundamentais da matéria, de forma ‘econômica e simples’, como convém à ciência. Essa rede
conceitual, enfim, compõe um quadro único em relação ao átomo, sem paralelo em sua história.
Em regra, a retomada de conceitos não resiste à ação do tempo, evidenciando rupturas
significativas, descontinuidades teóricas irreconciliáveis, decorrentes de modos de pensar
diferentes, característicos de cada época.
A filosofia da ciência ilumina a história da ciência. Sem ela, essa história é acrítica, enci-
clopédica, dogmática, linear, sem tropeços, sem idas e vindas, ‘racionalmente racional’.
O átomo de Demócrito e o flogístico de Stahl são livres criações do espírito e objeto de
debate dentro da ciência, mas enquanto a aceitação ou rejeição do primeiro se dá no terreno das
hipóteses, consonante com o perfil de ciência vigente, a pertinência científica do segundo é objeto
da experimentação, em princípio, instância definidora de sua corroboração ou abandono.
O calórico, essa substância sutil do calor, não
tem peso e, se o possui, não é detectado pelo
instrumental científico, de modo que seus opositores ainda não dispõem de argumentos con-
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BACHELARD, 1999.
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LOPES, 1996.
Do átomo grego ao átomo de Bohr
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vincentes para a sua refutação. Mas isso não importa. A suposta ausência de peso do calórico
contribui para reafirmar o
peso de um corpo, e de seus contituintes elementares, como uma gran-
deza fundamental na ciência, uma constante independente de variações de temperatura.
Na sua “Óptica”, conhecida e citada por Dalton em suas anotações, Newton já havia
chamado a atenção para o peso das ‘partículas sólidas, maciças, duras e impenetráveis’ de que a
matéria é constituída. Mas o peso é apenas uma das muitas propriedades ressaltadas por ele, como
tamanho, forma, cor, umidade. Em contraste, o peso atômico dos elementos é a pedra angular da
teoria de Dalton.
Entre acertos e equívocos, a contribuição de Dalton à ciência é indiscutível. Contudo, a
teoria atômica da matéria nunca foi uma unanimidade entre os cientistas do século XIX. Além
dos aspectos técnicos relativos à estruturação e ao formalismo da própria teoria, estava em jogo
uma outra importante questão: os átomos são entidades reais ou constructos meramente
matemáticos?
A hipótese atômica formulada por Dalton não assegura a realidade do átomo. Ela dota o
átomo de uma função explicativa de natureza puramente numérica em relação aos resultados co-
nhecidos, como a lei de conservação da massa, a lei das proporções definidas e a lei da
proporções múltiplas.
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O químico inglês Humphry Davy (1778-1829) expressa bem esse sentimento
quando en-
trega a medalha real a Dalton, em 1826. Na oportunidade, Davy destacou a contribuição que a
teoria química das proporções definidas, ou teoria atômica, trouxe à ciência, “ao
possibilitar a de-
dução de um imenso número de fatos a partir de alguns resultados experimentais autênticos e pre-
cisos”, sem, no entanto, deixar de ressaltar que era importante separar “a parte prática da doutrina
de sua parte atômica ou hipotética”.
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Em seu “Princípios da química inorgânica”, de 1902, Wilhelm Ostwald (1853-1932)
afirma que
Processos químicos ocorrem de maneira a dar a impressão de que as substâncias são compostas de
átomos. [...] Na melhor das hipóteses, disso decorre a possibilidade de que seja assim realmente, mas não
a certeza. [...] Não nos devemos deixar desencaminhar pela concordância entre imagem e realidade,
confundindo as duas. [...] Uma hipótese é apenas uma ajuda para a representação
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