discurso, os três textos a seguir são de autoria dos linguistas
Patrick Charaudeau e Dominique maingueneau, que tratam
dessas distinções em suas obras. os autores procuram pro-
porcionar ao leitor uma visão mais precisa dessas noções,
desfazendo possíveis confusões conceituais.
TExTO 4
Gênero de discurso
Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau
A noção de gênero remonta à Antiguidade. Volta-
-se a encontrá-la na tradição da crítica literária que as-
sim classifica as produções escritas segundo certas ca-
racterísticas; no uso corrente, no qual ela é um meio
para o indivíduo localizar-se no conjunto das produ-
ções textuais; finalmente, mas ainda submetida a de-
bates, nas análises de discurso e análises textuais.
Na Antiguidade coexistiram dois tipos de atividade
discursiva. Um, que nasceu na Grécia pré-arcaica, era o
fazer dos poetas. Esses eram encarregados de represen-
tar o papel intermediário entre os deuses e os humanos,
de um lado celebrando os heróis, de outro interpretando
os enigmas que os deuses enviavam aos humanos.
Assim, foram codificados certos gêneros tais como o
épico, o lírico, o dramático, o epidítico etc. O outro teve
nascimento na Grécia clássica e seu desenvolvimento,
na Roma de Cícero; apareceu como resposta às necessi-
dades de gerir a vida da cidade e os conflitos comerciais,
fazendo da fala pública um instrumento de deliberação
e de persuasão jurídica e política.
Na tradição literária, presume-se que os gêneros po-
dem permitir a seleção e a classificação dos diferentes
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textos literários que pertencem à prosa ou à poesia. Mas
isso se deu ao longo dessa tradição literária segundo cri-
térios que não são todos da mesma natureza.
Critérios ao mesmo tempo de composição, de forma
e de conteúdo que distinguem os gêneros: poesia, teatro,
romance, ensaio. Depois, no interior desses, o soneto, a
ode, a balada, o madrigal, a estância etc. para a poesia; o
épico, o elegíaco etc. para a narrativa; a tragédia, o dra-
ma, a comédia etc. para o teatro.
Critérios que remetem a diferentes modos de conce-
ber a representação da realidade, definidos por meio de
textos ou manifestos, tendo por função fundar Escolas, e
que corresponderam a períodos históricos: os gêneros
romântico, realista, naturalista, surrealista etc.
Critérios que remetem à estrutura dos textos e, par-
ticularmente, a sua organização enunciativa: o fantásti-
co, a autobiografia, o romance histórico etc.
O problema apresentado por essas classificações é
que um mesmo tipo de texto pode acumular vários des-
ses critérios de modo homogêneo (a tragédia, no século
XVII, sob forma teatral, com estrutura particular) ou he-
terogêneo (o fantástico que se encontra em diferentes
épocas, sob diferentes formas, em diferentes estruturas).
Em semiótica, análise do discurso e análise textual,
encontra-se de novo essa noção aplicada igualmente aos
textos não literários. Mas aqui coexistem, realmente
opostas, diferentes definições que testemunham cada
posicionamento teórico ao qual elas se filiam. Ainda que
seja difícil classificar esses diferentes posicionamentos,
distinguir-se-ão vários pontos de vista.
Um ponto de vista funcional, desenvolvido por cer-
tos analistas, que procuram estabelecer funções com
base na atividade linguageira, a partir das quais as pro-
duções textuais podem ser classificadas segundo o polo
do ato de comunicação em direção ao qual elas são
orientadas. Assim, há classificações baseadas no esque-
ma da comunicação, propostas por Jakobson: função
emotiva, conativa, fática, poética, referencial e metalin-
guística, ou, de maneira diferente, porque mais sociolo-
gizadas, as funções propostas por Halliday: funções ins-
trumental, interacional, pessoal, heurística, imaginativa,
ideacional, interpessoal etc., ou por Brown e Yule: fun-
ções transacional e interacional.
Um ponto de vista enunciativo, iniciado por
Benveniste que, apoiando-se no “aparelho formal da
enunciação”, propôs uma oposição entre discurso e his-
tória — frequentemente reformulada em discurso
vs.
narrativa. No prolongamento desse ponto de vista, de-
senvolveram-se análises que tentam descrever os gêne-
ros considerando as características formais dos textos
e reunindo as marcas mais recorrentes. Para Beacco e
Moirand, por exemplo, trata-se de “colocar em evidên-
cia regularidades ou invariantes dos discursos no nível
de sua estruturação longitudinal (por exemplo: estru-
tura do parágrafo) ou no nível de suas atualizações lin-
guageiras ( formas de indicações metadiscursivas, for-
mas da intertextualidade, formas de presença do enun-
ciador e do ouvinte...)”. Para Biber, uma coleta estatísti-
ca de traços gramaticais permite-lhe construir uma ti-
pologia dos discursos: interação interpessoal, intera-
ção informativa etc.
Um ponto de vista textual, mais voltado para a orga-
nização dos textos, que procura definir a regularidade
composicional desses textos, propondo, por exemplo,
como fez Adam, um nível intermediário entre a frase e o
texto chamado sequencial que tem um valor prototípico
de narrativa, descrição, argumentação etc.: “As sequên-
cias são unidades composicionais um pouco mais com-
plexas do que simples períodos com os quais elas se con-
fundem algumas vezes”. Vários autores falam a esse pro-
pósito de “gêneros textuais”.
Um ponto de vista comunicacional, que confere a
esse termo um sentido amplo, ainda que com orienta-
ções diferentes. Para Bakhtin, por exemplo, os gêneros
dependem da “natureza comunicacional” da troca ver-
bal, o que lhe permite distinguir duas grandes categorias
de base: produções “naturais, espontâneas”, pertencen-
tes aos “gêneros primários” (aquelas da vida cotidiana), e
produções “construídas”, institucionalizadas, pertencen-
tes aos “gêneros secundários” (aquelas produções elabo-
radas, literárias, científicas etc.) que derivariam dos pri-
mários. Para Maingueneau e Cossutta, trata-se de sele-
cionar e descrever “tipos de discurso que aspiram a um
papel fundador e que nós chamamos constituintes”, cuja
finalidade simbólica é determinar os valores de um certo
domínio de produção discursiva. “São constituintes es-
sencialmente os discursos religioso, científico, filosófico,
literário, jurídico.” Para Charaudeau, que procura anco-
rar o discurso não no social, mas em uma filiação psicos-
sociológica, trata-se de determinar os gêneros no ponto
de articulação entre “as coerções da organização discur-
sivas” e “as características das formas textuais”, localizá-
veis pela recorrência das marcas formais. Mas, para esse
autor, as características dos discursos dependem essen-
cialmente de suas condições de produção situacionais
nas quais são definidas as coerções que determinam as
características da organização discursiva e formal; os gê-
neros de discurso são “gêneros situacionais”.
A diversidade dos pontos de vista mostra a comple-
xidade da questão dos gêneros, incluindo denomina-
ções, já que alguns falam de “gêneros de discurso”, outros
de “gêneros de texto”, outros ainda de “tipos de textos”:
Adam opõe “gêneros” e “tipos de texto”; Bronckart opõe
“gêneros de textos e tipos de discurso”; Maingueneau
distingue, em relações de encaixamento, “tipo de texto”,
“hipergênero” e “gêneros de discurso”; Charaudeau dis-
tingue “gêneros e subgêneros situacionais” e, no interior
desses, variantes de gêneros de discurso.
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Vê-se que, para definir a noção, ora leva-se em conta,
de modo preferencial, a ancoragem social do discurso,
ora sua natureza comunicacional, ora as regularidades
composicionais dos textos, ora as características for-
mais dos textos produzidos. Pode-se pensar que esses
diferentes aspectos estão ligados, o que cria, aliás, afini-
dades em torno de duas orientações principais: aquela
que está mais voltada para os textos, justificando a de-
nominação “gêneros de texto”, e a mais voltada para as
condições de produção do discurso, que justifica a deno-
minação “gêneros do discurso”.
CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do
discurso. São Paulo: Cortez, 2008. p. 249-251.
TExTO 5
Modo de organização do discurso
Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau
Essa noção é definida por Charaudeau como “o con-
junto dos procedimentos de colocação em cena do ato
de comunicação, que correspondem a algumas finalida-
des (descrever, narrar, argumentar...)”. Trata-se, para esse
autor, de distinguir as operações linguageiras que são
postas em funcionamento em cada um dos níveis de
competência: o nível situacional de reconhecimento das
coerções psico-sócio-discursivas da situação de comuni-
cação; o nível discursivo dos modos de organização do
discurso; o nível semiolinguístico da composição textual.
Assim sendo, o gênero de um texto não deverá ser con-
fundido com seu modo de organização. Um texto publi-
citário, científico, administrativo pode resultar da com-
binação de vários desses modos de organização, o que
não impede que, às vezes, um texto se caracterize pela
predominância de um desses modos (“narrativo”, como
um conto; “argumentativo”, como uma tarefa de mate-
mática; “descritivo”, como um inventário).
CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do
discurso. São Paulo: Cortez, 2008. p. 337-338.
TExTO 6
Tipologia dos discursos
Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau
Uma das tarefas essenciais da análise do discurso é
classificar os discursos produzidos numa sociedade.
Como componentes de sua competência comunicativa,
os locutores dispõem de tipologias, adquiridas por con-
tato ou por ensino explícito, necessárias para compreen-
der ou produzir textos, mas, também, para circular na
sociedade. Existem, ao lado das tipologias comuns (cf.
nas livrarias: “romances policiais”, “históricos”, “senti-
mentais”...), tipologias de especialistas (cf. no jornalismo:
“editorial”, “notícia”, “chapéu”, “boxe”...). Como a classifi-
cação dos discursos pode se fundamentar em critérios
variados (grau de generalidade dos critérios, lugar social
de pertinência da tipologia, nível discursivo apreendi-
do...), existem muitas tipologias.
Tipologias homogêneas, intermediárias e
heterogêneas
Petitjean propôs uma tipologia das tipologias. As ti-
pologias homogêneas apoiam-se numa base única para
elaborar uma grade abstrata, distinta dos textos concre-
tos: é o caso, por exemplo, de Werlich, ou de Adam, que
distinguem, baseados em procedimentos cognitivos, di-
versos tipos fundamentais: descritivo, narrativo, argu-
mentativo... As tipologias intermediárias recorrem a cri-
térios heterogêneos, mas organizando-os a partir de um
“foco classificatório”: essencialmente o modo enunciati-
vo, a intenção de comunicação ou as condições de pro-
dução. As tipologias heterogêneas associam critérios
relacionados a focos classificatórios distintos: intenção
comunicativa, temática, medium, modo enunciativo etc.
É dessa maneira que se analisam os gêneros de discurso,
ou seja, os dispositivos de fala sócio-historicamente
constituídos: o jornal televisivo, a consulta médica, a
crônica, a dissertação literária etc.
[...]
Tipologia, gênero de discurso e análise do discurso
As atividades de fala efetivas nas quais são tomados
os locutores são nomeadas mais frequentemente gêne-
ros de discurso, e menos frequentemente, gêneros de
textos. Toda classificação rígida é impossível, pois “esses
gêneros se adaptam permanentemente à evolução dos
relacionamentos sociocomunicativos, e são portadores
de múltiplas indexações sociais. Eles são organizados
em nebulosas, com fronteiras incertas e instáveis”
(Bronckart, 1996: 110)
1
. De qualquer maneira, podemos
analisá-los e classificá-los somente recorrendo a crité-
rios heterogêneos: estatuto dos participantes, meio, fi-
nalidade, lugar e momento, organização textual, em par-
ticular. Muitos critérios podem servir de base às classifi-
cações. De modo geral, para tornar eficiente, estabele-
cem-se tipologias no interior de um domínio delimitado:
os gêneros televisuais de informação, os gêneros da filo-
sofia etc.
Sendo possíveis várias classificações — e então vá-
rias tipologias — a propósito dos mesmos objetos, o pro-
blema lançado para essa noção é o de sua eficácia, que é
ligada à natureza e ao número de variáveis escolhidas
1
BroNCKArT, J.-P. Activité langagière, textes et discours: pour un interac-
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