A FEBEM, a “questão do menor” e o Sistema de Justiça
“Roubos, furtos, lesões corporais são as ocorrências que em maior
índice registra-se pelo Departamento Estadual de Polícia de Menores,
que recebe em média vinte crianças diariamente, em sua maioria
abandonadas (sem pais ou responsáveis), somando-se aos carentes e
aos menores já fichados que saem do Juizado e retornam às delegacias.
[...] O menor, quando detido, no mesmo dia é encaminhado ao
Juizado, exceto aquele que passa por inquérito. Nesse caso, o menor
fica recolhido para averiguações e, quando concluídas as diligencias, é
encaminhado ao Juizado. Diariamente, o Departamento recebe das
três delegacias de Menores (a primeira localizada na Boa Vista, Rua
José de Alencar; a segunda, em Casa Amarela; e a terceira, em
Afogados), um relatório informando o número de menores detidos, os
que foram remetidos ao Juiz e os que ficaram detidos para inquérito e
averiguações”.
16
Projeto História, São Paulo, n.55, pp.45-77, Jan.-Abr. 2016
57
Em 04 de fevereiro de 1979, o Jornal do Commercio, publicou uma
longa matéria intitulada Meninos saem do Juizado e voltam à delinquência, que
permite analisar como foi construído o discurso da imprensa sobre o
cotidiano de meninos que praticavam os assaltos em Casa Amarela, bairro
localizado na Zona Norte do Recife, e nas mais diferentes localidades da
cidade.
O texto jornalístico demonstra que o sistema de segurança,
materializado através da delegacia especializada, contava com o aparato da
Justiça e a própria Febem, que eram acionadas no sentido de arquitetar
um dispositivo de vigilância e controle que buscava agir sobre o espaço
urbano onde esses meninos e meninas transitavam. O Departamento
Estadual de Polícia de Menores representava um órgão controlador das
ações policiais, o que permite afirmar que a ação do Estado buscava atuar
na vigilância, repressão e punição daquelas crianças e adolescentes que
apresentavam uma ameaça social a partir do olhar policial.
Os jornais da época, que se tornam uma fonte importante para
problematizar como setores da imprensa, do período da Ditadura Civil-
Militar, produziam as matérias sobre o “problema do menor” e a atuação
do Juizado de Menores, delegacias especializada e a própria FEBEM.
Este debate propicia um diálogo com a questão do controle e da
segurança urbana e como vêm sendo elaborada as estratégias para
combater o chamado indivíduo ameaçador. O historiador Carlos Bretas,
em sua obra Guerra nas ruas, afirma que a sociedade ocidental moderna
construiu um discurso sobre a polícia, identificando-a como órgão
responsável pela manutenção da ordem e dos bons costumes. Neste
cenário, o policial passava a ser visto como o agente público que deveria
Projeto História, São Paulo, n.55, pp.45-77, Jan.-Abr. 2016
58
executar o controle do cotidiano das pessoas. De acordo com Bretas, no
Brasil a relação da polícia com a Justiça é bastante próxima, fazendo
inclusive parte de sua dinâmica de atuação. Para o historiador:
“As atividades policiais dependem legalmente de o Poder Executivo,
mas também de o Poder Judiciário exercerem forte controle medida
em que as consequências de médio prazo da sua ação repressiva são
estabelecidas pela Justiça, bem como a legalidade dessa ação. O foco
principal da disputa polícia-justiça é a capacidade de efetuar prisões e
conservar presos”.
17
Desse modo, a relação da polícia especializada com o Juizado de
Menores pode ser entendida a partir da própria cultura institucional do
dispositivo policial, que encontra no sistema de justiça uma parceria
estratégica para a execução de suas ações.
No século XX, as medidas de controle e coerção contra as
crianças e os adolescentes que viviam em situação de rua procuravam
conter o crescimento da criminalidade nas grandes cidades. A própria
ideia da República, baseada nos princípios da “ordem” e do “progresso”,
trazia consigo a proposta de fortalecer as instituições de segurança no
sentido de garantir o controle social. Ao se debruçar sobre a questão da
criminalidade infanto-juvenil no início do Brasil Republicano, o
historiador Marco Antônio Cabral dos Santos nos fala que o controle do
Estado, através do Código Penal, que estabelecia punição às práticas de
“vadiagem”, procurou estabelecer normas disciplinadoras e punitivas
contra os meninos e as meninas considerados “vadios”. De acordo com
Santos:
Projeto História, São Paulo, n.55, pp.45-77, Jan.-Abr. 2016
59
“A recém-instaurada República tecia e estruturava os símbolos de um
novo país sob a pecha da “ordem” e do “progresso”, impulsionada
pelo nacionalismo, que, desde a década de 1880, ecoava em prol da
industrialização. Ao mesmo tempo, a aura da República moldava a
forte dicotomia entre os mundos do trabalho e da vadiagem,
protagonizados respectivamente, pelo imigrante e pelo nacional,
principalmente aquele advindo da escravidão. A eugenia era a ideia
corrente entre teóricos e autoridades, e a “profilaxia social” era
praticada cotidianamente”.
18
Nesse sentido, as práticas de roubos, furtos, mendicância,
prostituição passaram a estar na mira da polícia, que buscava combater
tais ações a partir da lógica punitiva, onde o encarceramento era visto
como alternativa de retirar a presença de meninos e meninas das vias
públicas, na tentativa de “higienizar”, de “limpar” o cenário urbano. A
questão da criminalidade infanto-juvenil não era percebida como
problema de ordem social, e sim como um caso que deveria ser resolvido
pelo aparato policial.
O Departamento Estadual de Polícia de Menores e o Juizado de
Menores articulavam as suas ações no sentido de promoverem um
controle sobre o cotidiano do Recife, buscando atuar nas ruas do centro
comercial da cidade e nos bairros periféricos. As matérias de jornais da
época contrariam a ideia de que apenas o centro comercial do Recife era
palco para atuação das crianças e dos adolescentes que praticavam
atividades ilegais, seja de forma individual ou coletiva.
O Recife da década de 1970 possuía, nos seus bairros periféricos,
centros comerciais que se tornaram espaços marcados pelas desigualdades
e conflitos sociais, levando o Estado a articular um sistema de segurança
caracterizado pela atuação do aparato policial. A criação de uma delegacia
específica para tratar sobre as questões que envolviam os chamados
Projeto História, São Paulo, n.55, pp.45-77, Jan.-Abr. 2016
60
menores aponta para uma sociedade preocupada em garantir o controle, a
vigilância e a punição sobre o cotidiano de meninos e meninas e suas
respectivas famílias.
A partir da criação da FEBEM, a expressão menor, que já fazia
Compartilhe com seus amigos: |