Capítulo 2
Ensinar não é transferir conhecimento
As considerações ou reflexões até agora feitas vêm sendo desdobram entos de um prim eiro saber
inicialm ente apontado com o necessário à form ação docente, num a perspectiva progressista.
Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria
produção ou a sua construção. Quando entro em um a sala de aula devo estar sendo um ser aberto
a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibiç ões; um ser crítico e inquiridor,
inquieto em face da tarefa que tenho – a de ensinar e não a de transferir conhecimento.
É preciso insistir: este saber necessário ao professor – que ensinar não é transferir conhecim ento
– não apenas precisa de ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razões de ser –
ontológica, política, ética, epistem ológica, pedagógica, m as tam bém precisa de ser
constantem ente testem unhado, vivido.
Com o professor num curso de form ação docente não posso esgotar m inha prática discursando
sobre a Teoria da não extensão do conhecim ento. Não posso apenas falar bonito sobre as razões
ontológicas, epistem ológicas e políticas da Teoria. O m eu discurso sobre a Teoria deve ser o
exem plo concreto, prático, da teoria. Sua encarnação. Ao falar da construção do conhecim ento,
criticando a sua extensão, j á devo estar envolvido nela, e nela, a construção, estar envolvendo os
alunos.
Fora disso, m e em aranho na rede das contradições em que m eu testem unho, inautêntico, perde
eficácia.
Me torno tão falso quanto quem pretende estim ular o clim a dem ocrático na escola por m eios e
cam inhos autoritários. Tão fingido quanto quem diz com bater o racism o m as, perguntado se
conhece Madalena, diz:
“Conheço-a. É negra mas é com petente e decente.” Jam ais ouvi ninguém dizer que conhece
Célia, que ela é loura, de olhos azuis, mas é com petente e decente. No discurso perfilador de
Madalena, negra, cabe a conj unção adversativa mas; no que contorna Célia, loura de olhos azuis,
a conj unção adversativa é um não-senso. A com preensão do papel das conj unções que, ligando
sentenças entre si, im pregnam a relação que estabelecem de certo sentido, o de causalidade, falo
porque recuso o silêncio, o de adversidade, tentaram dom iná-la mas não conseguiram , o de fi
nalidade, Pedro lutou para que ficasse clara a sua posição, o de integração, Pedro sabia que ela
voltaria, não é suficiente para explicar o uso da adversativa mas na relação entre a sentença
Madalena é negra e Madalena é com petente e decente. A conj unção mas aí, im plica um j uízo
falso, ideológico: sendo negra, espera-se que Madalena nem sej a com petente nem decente. Ao
reconhecer-se, porém , sua decência e sua com petência a conj unção mas se tornou indispensável.
No caso de Célia, é um disparate que, sendo loura de olhos azuis não sej a com petente e decente.
Daí o não-senso da adversativa. A razão é ideológica e não gram atical.
Pensar certo – e saber que ensinar não é transferir conhecim ento é fundam entalm ente pensar
certo – é um a postura exigente, difícil, às vezes penosa, que tem os de assum ir diante dos outros e
com os outros, em face do m undo e dos fatos, ante nós m esm os. É difícil, não porque pensar
certo sej a form a própria de pensar de santos e de anj os e a que nós arrogantem ente
aspirássem os. É difícil, entre outras coisas, pela vigilância constante que tem or de exercer sobre
nós próprios para evitar os sim plism os as facilidades, as incoerências grosseiras. É difícil porque
nem sem pre tem os o valor indispensável para não perm itir que a raiva que podem os ter de
alguém vire raivosidade que gera um pensar errado e falso. Por m ais que m e desagrade um a
pessoa não posso m enosprezá-la com um discurso em que, cheio de m im m esm o, decreto sua
incom petência absoluta. Discurso em que, cheio de m im m esm o trato-a com desdém , do alto de
m inha falsa superioridade. A m im não m e dá raiva m as pena quando pessoas assim raivosas,
arvoradas em figuras de gênio, m e m inim izam e destratam .
É cansativo, por exem plo, viver a hum ildade, condição “sine qua” do pensar certo, que nos faz
proclam ar o nosso próprio equívoco, que nos faz reconhecer e anunciar a superação que
sofrem os.
O clim a do pensar certo não tem nada que ver com o das fórm ulas preestabelecidas, m as seria a
negação do pensar certo se pretendêssem os forj á-lo na atm osfera da licenciosidade ou do
espontaneísm o. Sem rigorosidade m etódica não há pensar cerco.
2.1 – Ensinar exige consciência do inacabam ento
Com o professor crítico, sou um “aventureiro” responsável, predisposto à m udança, à aceitação
do diferente. Nada do que experim entei em m inha atividade docente deve necessariam ente
repetir-se.
Repito, porém , com o inevitável, a franquia de m im m esm o, radical, diante dos outros e do
m undo. Minha franquia ante os outros e o m undo m esm o é a m aneira radical com o m e
experim ento enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabam ento.
Aqui chegam os ao ponto de que talvez devêssem os ter partido. O do inacabam ento do ser
hum ano. Na verdade, o inacabam ento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital.
Onde há vida, há inacabam ento. Mas só entre m ulheres e hom ens o inacabam ento se tornou
consciente. A invenção da existência a partir dos m ateriais que a vida oferecia levou hom ens e
m ulheres a prom over o suporte em que os outros anim ais continuam , em mundo. Seu m undo,
m undo dos hom ens e das m ulheres. A experiência hum ana no mundo m uda de qualidade com
relação à vida anim al no suporte. O suporte é o espaço, restrito ou alongado, que o anim al se
prende “afetivam ente” tanto quanto para, resistir; e o espaço necessário a seu crescim ento e que
delim ita seu dom ínio. É o espaço em que, treinado, adestrado,
“aprende” a sobreviver, a caçar, a atacar, a defender-se nutri tem po de dependência dos adultos
im ensam ente m enor do que é necessário ao ser hum ano para as m esm as coisas. Quanto m ais
cultural é o ser m aior a sua infância, sua dependência de cuidados especiais. Faltam ao
“m ovim ento” dos outros anim ais no suporte a linguagem conceitual, a inteligibilidade do próprio
Compartilhe com seus amigos: |