Paulo Freire
São Paulo
Setembro de 1996
Capítulo 1
Não há docência sem discência
Devo deixar claro que, em bora sej a m eu interesse central considerar neste texto saberes que m e
parecem indispensáveis à prática docente de educadoras ou educadores críticos, progressistas,
alguns deles são igualm ente necessários a educadores conservadores. São saberes dem andados
pela prática educativa em si m esm a, qualquer que sej a a opção política do educador ou
educadora.
Na continuidade da leitura vai cabendo ao leitor ou leitora o exercício de perceber se este ou
aquele saber referido corresponde à natureza da prática progressista ou conservadora ou se, pelo
contrário, é exigência da prática educativa m esm a independentem ente de sua cor política ou
ideológica. Por outro lado, devo sublinhar que, de form a não-sistem ática, tenho m e referido a
alguns desses saberes em trabalhos anteriores. Estou convencido, porém , é legítim o acrescentar,
da im portância de um a reflexão com o esta quando penso a form ação docente e a prática educ
ativo-crítica.
O ato de cozinhar, por exem plo, supõe alguns saberes concernentes ao uso do fogão, com o
acendê-
lo, com o equilibrar para m ais, para m enos, a cham a, com o lidar com certos riscos m esm o
rem otos de incêndio, com o harm onizar os diferentes tem peros num a síntese gostosa e atraente. A
prática de cozinhar vai preparando o novato, ratificando alguns daqueles saberes, retificando
outros, e vai possibilitando que ele vire cozinheiro. A prática de velej ar coloca a necessidade de
saberes fundantes com o o do dom ínio do barco, das partes que o com põem e da função de cada
um a delas, com o o conhecim ento dos ventos, de sua força, de sua direção, os ventos e as velas, a
posição das velas, o papel do m otor e da com binação entre m otor e velas. Na prática de velej ar
se confirm am , se m odificam ou se am pliam esses saberes.
A reflexão crítica sobre a prática se torna um a exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a
teoria pode ir virando blablablá e a prática, ativism o.
O que m e interessa agora, repito, é alinhar e discutir alguns saberes fundam entais à prática
educativo-crítica ou progressista e que, por isso m esm o, devem ser conteúdos obrigatórios à
organização program ática da form ação docente. Conteúdos cuj a com preensão, tão clara e tão
lúcida quanto possível, deve ser elaborada na prática form adora. É preciso, sobretudo, e aí j á vai
um destes saberes indispensáveis, que o form ando, desde o princípio m esm o de sua experiência
form adora, assum indo-se com o suj eito tam bém da produção do saber, se convença
definitivam ente de que ensinar não é transferir conhecimento, m as criar as possibilidades para a
sua produção ou a sua construção.
Se, na experiência de m inha form ação, que deve ser perm anente, com eço por aceitar que o
formador é o suj eito em relação a quem m e considero o objeto, que ele é o suj eito que me forma
e eu, o objeto por ele formado, m e considero com o um paciente que recebe os conhecim entos-
conteúdos-acum ulados pelo suj eito que sabe e que são a m im transferidos. Nesta form a de
com preender e de viver o processo form ador, eu, obj eto agora, terei a possibilidade, am anhã, de
m e tornar o falso suj eito da “form ação” do futuro obj eto de m eu ato form ador. É preciso que,
pelo contrário, desde os com eços do processo, vá ficando cada vez m ais claro que, em bora
diferentes entre si, quem form a se form a e re-form a ao for-m ar e quem é form ado form a -se e
form a ao ser form ado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecim entos, conteúdos
nem forrar é ação pela qual um suj eito criador dá form a, estilo ou alm a a um corpo indeciso e
acom odado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus suj eitos, apesar das
diferenças que os conotam , não se reduzem à condição de obj eto, um do outro. Quem ensina
aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina ensina algum a coisa a
alguém . Por isso é que, do ponto de vista gram atical, o verbo ensinar é um verbo transitivo-
relativo. Verbo que pede um obj eto direto
– alguma coisa – e um obj eto indireto – a alguém. Do ponto de vista dem ocrá tico em que m e
situo, m as tam bém do ponto de vista da radicalidade m etafísica em que m e coloco e de que
decorre m inha com preensão do hom em e da m ulher com o seres históricos e inacabados e sobre
que se funda a m inha inteligência do processo de conhecer, ensinar é algo m ais que um verbo
transitivo-relativo.
Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialm ente que, historicam ente,
m ulheres e hom ens descobriram que era possível ensinar. Foi assim , socialm ente aprendendo,
que ao longo dos tem pos m ulheres e hom ens perceberam que era possível – depois, preciso –
trabalhar m aneiras, cam inhos, m étodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras
palavras, ensinar se diluía na experiência realm ente fundante de aprender. Não tem o dizer que
inexiste validade no ensino de que não resulta um aprendizado em que o aprendiz não se tornou
capaz de recriar ou de refazer o ensinado, em que o ensinado que não foi apreendido não pode
ser realm ente aprendido pelo aprendiz.
Quando vivem os a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participam os de um a
experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que
a boniteza deve achar-se de m ãos dadas com a decência e com a seriedade.
Às vezes, nos m eus silêncios em que aparentem ente m e perco, desligado, flutuando quase, penso
na im portância singular que vem sendo para m ulheres e hom ens serm os ou nos term os tornado,
com o constata François Jacob, “seres program ados, m as, para aprender”*. É que o processo de
aprender, em que historicam ente descobrim os que era possível ensinar com o tarefa não apenas
em butida no aprender, m as perfilada em si, com relação a aprender, é um processo que pode
deflagrar no aprendiz um a curiosidade crescente, que pode torná-la m ais e m ais criador. O que
quero dizer é o seguinte: quanto m ais criticam ente se exerça a capacidade de aprender tanto
m ais se constrói e desenvolve o que venho cham ando “curiosidade epistem ológica”**, sem a
qual não alcançam os o conhecim ento cabal do obj eto.
É isto que nos leva, de um lado, à crítica e à recusa ao ensino “bancário”***, de outro, a
com preender que, apesar dele, o educando a ele subm etido não está fadado a fenecer; em que
pese o ensino
"bancário”, que deform a a necessária criatividade do educando e do educador, o educando a ele
suj eitado pode, não por causa do conteúdo cuj o “conhecim ento” lhe foi transferido, m as por
causa do processo m esm o de aprender, dar, com o se diz na linguagem popular, a volta por cim a
e superar o autoritarism o e o erro epistem ológico do “bancarism o”.
O necessário é que, subordinado, em bora, à prática “bancária”, o educando m antenha vivo em si
o gosto da rebeldia que, aguçando sua curiosidade e estim ulando sua capacidade de arriscar-se,
de aventurar-se, de certa form a o “im uniza” contra o poder apassivador do "bancarism o". Neste
caso, é a força criadora do aprender de que fazem parte a com paração, a repetição, a
constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilm ente satisfeita, que supera os efeitos
negativos do falso ensinar.
Esta é um a das significativas vantagens dos seres hum anos – a de se terem tornado capazes de ir
m ais além de seus condicionantes. Isto não significa, porém , que nos sej a indiferente ser um
educador “bancário” ou um educador “problem atizador”.
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