vontade de Deus, algo que não pode ser mudado.
Não posso aceitar com o tática do bom com bate a política do quanto pior m elhor, m as não posso
tam bém aceitar, im passível, a política assistencialista que, anestesiando a consciência oprim ida,
prorroga, “sine dic, a necessária m udança da sociedade. Não posso proibir que os oprim idos com
quem trabalho num a favela votem em candidatos reacionários, m as tenho o dever de adverti-los
do erro que com etem , da contradição em que se em aranham . Votar no político reacionário é
aj udar a preservação do “status quo”.
Com o posso votar, se sou progressista e coerente com m inha opção, num candidato em cuj o
discurso, faiscante de desam or, anuncia seus proj etos racistas?
Partindo de que a experiência da m iséria é um a violência e não a expressão da preguiça popular
ou fruto da m estiçagem ou da vontade punitiva de Deus, violência contra que devem os lutar,
tenho, enquanto educador, de m e ir tornando cada vez m ais com petente sem o que a luta perderá
eficácia. É que o saber de que falei – m udar é difícil m as é possível –, que m e em purra
esperançoso à ação, não é suficiente para a eficácia necessária a que m e referi. Movendo-m e
enquanto nele fundado preciso ter e renovar saberes específicos em cuj o cam po m inha
curiosidade se inquieta e m inha prática se baseia. Com o alfabetizar sem conhecim entos precisos
sobre a aquisição da linguagem , sobre linguagem e ideologia, sobre técnicas e m étodos do ensino
da leitura e da escrita? Por outro lado, com o trabalhar, não im porta em que cam po, no da
alfabetização, no da produção econôm ica em proj etos cooperativos, no da evangelização ou no
da saúde sem ir conhecendo as m anhas com que os grupos hum anos produzem sua própria
sobrevivência?
Com o educador preciso de ir "lendo” cada vez m elhor a leitura do m undo que os grupos
populares com quem trabalho fazem de seu contexto im ediato e do m aior de que o seu é parte. O
que quero dizer é o seguinte: não posso de m aneira algum a, nas m inhas relações político-
pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua
explicação do m undo de que faz parte a com preensão de sua própria presença no m undo. E isso
tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que cham o “leitura do m undo” que precede
sem pre a “leitura da palavra”.
Se, de um lado, não posso m e adaptar ou m e “converter" ao saber ingênuo dos grupos populares,
de outro, não posso, se realm ente progressista, im pôr-lhes arrogantem ente o m eu saber com o o
verdadeiro.
O diálogo em que se vai desafiando o grupo popular a pensar sua história social com o a
experiência igualm ente social de seus m em bros, vai revelando a necessidade de superar certos
saberes que, desnudados, vão m ostrando sua “incom petência” para explicar os fatos.
Um dos equívocos funestos de m ilitantes políticos de prática m essianicam ente autoritária foi
sem pre desconhecer totalm ente a com preensão do m undo dos grupos populares. Vendo-se com o
portadores da verdade salvadora, sua tarefa irrecusável não é propô-la m as impô-la aos grupos
populares.
Recentem ente, ouvi de j ovem operário num debate sobre a vida na favela que j á se fora o tem po
em que ele tinha vergonha de ser favelado. “Agora”, dizia, “m e orgulho de nós todos,
com panheiros e com panheiras, do que tem os feito através de nossa luta, de nossa organização.
Não é o favelado que deve ter vergonha da condição de favelado m as quem , vivendo bem e
fácil, nada faz para m udar a realidade que causa a favela. Aprendi isso com a luta”. É possível
que esse discurso do j ovem operário não provocasse nada ou quase nada o m ilitante
autoritariam ente m essiânico. É possível até que a reação do m oço m ais revolucionarista do que
revolucionário fosse negativa à fala do favelado, entendida com o expressão de quem se inclina
m ais para a acom odação do que para a luta. No fundo, o discurso do j ovem operário era a leitura
nova que fazia de sua experiência social de favelado. Se ontem se culpava, agora se tornava
capaz de perceber que não era apenas responsabilidade sua se achar naquela condição. Mas,
sobretudo, se tornava capaz de perceber que a situação de favelado não é irrevogável. Sua luta
foi m ais im portante na constituição do seu novo saber do que o discurso sectário do m ilitante
m essianicam ente autoritário.
E im portante salientar que o novo m om ento na com preensão da vida social não é exclusivo de
um a pessoa. A experiência que possibilita o discurso novo é social. Um a pessoa ou outra, porém ,
se antecipa na explicitação da nova percepção da m esm a realidade. Um a das tarefas
fundam entais do educador progressista é, sensível à leitura e à releitura do grupo, provocá-lo
bem com o estim ular a generalização da nova form a de com preensão do contexto.
É im portante ter sem pre claro que faz parte do poder ideológico dom inante a inculcação nos
dom inados da responsabilidade por sua situação. Daí a culpa que sentem eles, em determ inado
m om ento de suas relações com o seu contexto e com as classes dom inantes por se acharem
nesta ou naquela situação desvantaj osa. E exem plar a resposta que recebi de m ulher sofrida, em
São Francisco, Califórnia, num a instituição católica de assistência aos pobres. Falava com
dificuldade do problem a que a afligia e eu, quase sem ter o que dizer, afirm ei indagando: Você é
norte-am ericana, não é?”
“Não. Sou pobre”, respondeu com o se estivesse pedindo desculpas à “norte-am ericanidade” por
seu insucesso na vida. Me lem bro de seus olhos azuis m arej ados de lágrim as expressando seu
sofrim ento e a assunção da culpa pelo seu “fracasso” no m undo. Pessoas assim fazem parte das
legiões de ofendidos que não percebem a razão de ser de sua dor na perversidade do sistem a
social, econôm ico, político em que vivem , m as na sua incom petência. Enquanto sentirem assim ,
pensarem assim e agirem assim , reforçam o poder do sistem a. Se tornam coniventes da ordem
desum anizante.
A alfabetização, por exem plo, num a área de m iséria, só ganha sentido na dim ensão hum ana se,
com ela, se realiza um a espécie de psicanálise histórico-político-social de que vá resultando a
extroj eção da culpa indevida. A isto corresponde a “expulsão” do opressor de “dentro” do
oprim ido, enquanto sombra invasora. Som bra que, expulsa pelo oprim ido, precisa de ser
substituída por sua autonom ia e sua responsabilidade. Saliente-se contudo que, não obstante a
relevância ética e política do esforço conscientizador que acabo de sublinhar, não se pode parar
nele, deixando-se relegado para um plano secundário o ensino da escrita e da leitura da palavra.
Não podem os, num a perspectiva dem ocrática, transform ar um a classe de alfabetização num
espaço em que se proíbe toda reflexão em torno da razão de ser dos faros nem tam pouco num
“com ício libertador”. A tarefa fundam ental dos Danilson entre quem m e situo é experim ennr
com intensidade a dialética entre “a leitura do m undo” e a “leitura da palavra”.
“Program ados para aprender” e im possibilitados de viver sem a referência de um am anhã, onde
quer que haj a m ulheres e hom ens há sem pre o que fazer, há sem pre o que ensinar, há sem pre o
que aprender.
Nada disso, contudo, cobra sentido, para m im , se realizado contra a vocação para o "ser m ais”,
histórica e socialm ente constituindo-se, em que m ulheres e hom ens nos acham os inseridos.
2.9 – Ensinar exige curiosidade
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