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Antes do Baile Verde
Os Objetos
Finalmente pousou o olhar no globo de vidro e estendeu a mão.
— Tão transparente. Parece uma bolha de sabão, mas sem
aquele colorido de bolha refletindo a janela, tinha sempre uma jane-
la nas bolhas que eu soprava. O melhor canudo era o de mamoeiro.
Você também não brincava com bolhas? Hein, Lorena?
Ela esticou entre os dedos um longo fio de linha vermelha pre-
so à agulha. Deu um nó na extremidade da linha e, com a ponta da
agulha, espetou uma conta da caixinha aninhada no regaço. Enfia-
va um colar.
— Que foi?
Como não viesse a resposta, levantou a cabeça. Ele abria a
boca, tentando cravar os dentes na bola de vidro. Mas os dentes res-
valavam, produzindo o som fragmentado de pequenas castanholas.
— Cuidado, querido, você vai quebrar os dentes!
Ele rolou o globo até a face e sorriu.
— Aí eu compraria uma ponte de dentes verdes como o mar com
seus peixinhos ou azuis como o céu com suas estrelas, não tinha uma
história assim? Que é que era verde como o mar com seus peixinhos?
— O vestido que a princesa mandou fazer para a festa.
Lentamente ele girou o globo entre os dedos, examinando a
base pintalgada de cristais vermelhos e verdes.
— Como um campo de flores. Para que serve isto, Lorena?
— É um peso de papel, amor.
— Mas se não está pesando em nenhum papel — estranhou ele,
lançando um olhar à mesa. Pousou o globo e inclinou-se para a ima-
gem de um anjo dourado, deitado de costas, os braços abertos. — E
este anjinho? O que significa este anjinho?
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Lygia Fagundes Telles
Com a ponta da agulha ela tentava desobstruir o furo da con-
ta de coral. Franziu as sobrancelhas.
— É um anjo, ora.
— Eu sei. Mas para que serve? — insistiu. E apressando-se an-
tes de ser interrompido: — Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho
vale tanto quanto o peso de papel sem papel ou aquele cinzeiro sem
cinza, quer dizer, não tem sentido nenhum. Quando olhamos para
as coisas, quando tocamos nelas é que começam a viver como nós,
muito mais importantes do que nós, porque continuam. O cinzeiro
recebe a cinza e fica cinzeiro, o vidro pisa o papel e se impõe, esse
colar que você está enfiando… É um colar ou um terço?
— Um colar.
— Podia ser um terço?
— Podia.
— Então é você que decide. Este anjinho não é nada, mas se
toco nele vira anjo mesmo, com funções de anjo. — Segurou-o com
força pelas asas. — Quais são as funções de um anjo?
Ela deixou cair na caixa a conta obstruída e escolheu outra.
Experimentou o furo com a ponta da agulha.
— Sempre ouvi dizer que anjo é o mensageiro de Deus.
— Tenho então uma mensagem para Deus — disse ele e encos-
tou os lábios na face da imagem. Soprou três vezes, cerrou os olhos
e moveu os lábios murmurejantes. Tateou-lhe as feições como um
cego. — Pronto, agora sim, agora é um anjo vivo.
— E o que foi que você disse a ele?
— Que você não me ama mais.
Ela ficou imóvel, olhando. Inclinou-se para a caixinha de contas.
— Adianta dizer que não é verdade?
— Não, não adianta. — Colocou o anjo na mesa. E apertou os
olhos molhados de lágrimas, de costas para ela e inclinado para o
abajur. — Veja, Lorena, veja… Os objetos só têm sentido quando têm
sentido, fora disso… Eles precisam ser olhados, manuseados. Como
nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais triste do que
essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, va-
zio. É o peso de papel sem papel, o cinzeiro sem cinza, o anjo sem
anjo, fico aquela adaga ali fora do peito. Para que serve uma adaga
fora do peito? — perguntou e tomou a adaga entre as mãos. Voltou-
-se, subitamente animado. — É árabe, hein, Lorena? Uma meia-lua
de prata tão aguda… Fui eu que descobri esta adaga, lembra? Es-
tava na vitrina, quase escondida debaixo de uma bandeja, lembra?
Ela tomou entre as pontas dos dedos o fio de coral e balan-
çou-o num movimento de rede.
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