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psicológicos constantes. Depende do outro para satisfação de suas ne-
cessidades durante um largo período de tempo, tanto nos aspectos fí-
sicos (equilíbrio, locomoção, movimentos, alimentação, higiene e saú-
de, etc.), como nos aspectos cognitivos (construção de sua identidade
e modos de exploração e significação do mundo/ da cultura) e afetivos
(medo, raiva, choro, afeição, alegria,
tristeza, etc.).
Vigotski (2007) explica que a vulnerabilidade não se refere à incapacida-
de ou fraqueza da criança, mas à sua condição como pessoa que, estan-
do ainda no início da vida, necessita da interação e cuidado de outros
para que se desenvolva integralmente em todas as áreas.
[...] a imaturidade relativa da criança, em contraste com outras
espécies, torna necessário um apoio prolongado por parte dos
adultos [...] por um lado ela depende totalmente de organismos
imensamente mais experientes do que ela; por outro lado, ela colhe
os benefícios de um contexto ótimo e socialmente desenvolvido para
o aprendizado (VIGOTSKI, 2007, p. 166).
Nessa perspectiva, no cotidiano da Educação Infantil, compreender que
ela é vulnerável, significa que, por exemplo, embora cuidando e protegen-
do-a para que não se machuque nas brincadeiras, para que não se queime
nas horas de alimentar-se, para que não caia ao correr no pátio ou mesmo
ao tentar subir numa árvore, ao mesmo tempo devemos possibilitar-lhe
realizar tentativas e descobrir como se faz. Devemos ainda contribuir para
que aprenda e consiga, progressivamente, superar os desafios, sabendo os
riscos que a rodeiam em cada ação que experimenta e encontrando, com
ajuda do outro, as alternativas que a ajudarão na superação dos proble-
mas. Para tudo isso é necessário que a criança sinta-se segura, sabendo
que haverá alguém que poderá ajudá-la quando precisar.
Uma característica que diferencia/especifica a criança em relação aos adul-
tos é a globalidade, que reflete a forma holística pela qual ela aprende e se
desenvolve. Para Zabalza (1998; 2008) a criança é um sujeito não setorizável.
É inteira, se desenvolve como um todo integrado no qual o afetivo, o social
e o cognitivo se constituem numa dinâmica intensa, não sendo possível,
portanto, tratar isoladamente, no processo educativo, apenas uma dessas
“partes”, priorizando um aspecto em detrimento dos demais.
Por fim, Oliveira-Formosinho (2005) destaca que a Psicologia tem cha-
mado a atenção, nas últimas duas décadas, para o fato de que a compe-
tência da criança, desde muito pequena, tem uma latitude mais acentu-
ada do que a sua vulnerabilidade social aparenta. Ou seja, reconhece na
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Especificidades da Criança
criança humana, suas competências sociopsicológicas que se manifes-
tam desde a mais tenra idade, por exemplo, nas suas formas precoces de
comunicação – em cem linguagens.
Neste sentido, compreende-se que ao mesmo tempo em que a criança
é vulnerável/dependente do adulto, ela é capaz de aprender e se de-
senvolver, desde que lhe sejam dadas as condições propícias. Todas as
crianças têm capacidade/competência para aprender, salvo aquelas com
alguma deficiência ou transtorno fora da normalidade. No entanto, o quê
e como elas aprendem varia conforme as práticas culturais que viven-
ciam. Desta forma, é relevante o papel das interações com os objetos,
o meio social e os signos, e a mediação do outro nas práticas culturais.
Sendo assim, tanto no âmbito da Psicologia como da Sociologia, destaca-
-se que outra importante especificidade infantil é a capacidade de produ-
zir cultura. Nas suas interações sociais, entre pares, as crianças produzem
culturas infantis relativas à fantasia, à imaginação e à brincadeira. Segun-
do Kramer (2006, p. 16) “a cultura infantil é, pois, produção e criação. As
crianças produzem cultura e são produzidas na cultura em que se inserem
(em seu espaço) e que lhes é contemporânea (de seu tempo)”.
Sarmento (2007) afirma que: “todas as crianças, desde bebês, têm múl-
tiplas linguagens (gestuais, corporais, plásticas e verbais) por que se ex-
pressam”; têm “outras racionalidades”, construídas “nas interacções de
crianças, com a incorporação de afetos, da fantasia e da vinculação ao
real”; [...] “todas as crianças trabalham, nas múltiplas tarefas que preen-
chem seus cotidianos, na escola, no espaço doméstico e, para muitas,
também
nos campos, nas oficinas ou na rua” (SARMENTO, 2007, p. 36).
Finalmente, segundo o autor, “[...] as crianças são “sujeitos activos, que
interpretam e agem no mundo. Nessa acção, estruturam e estabelecem
padrões culturais. As culturas infantis constituem, com efeito, o mais im-
portante aspecto na diferenciação da infância” (Ibid, p. 36).
Para que se compreenda o que significa cultura da infância, é necessário
entender o que se assume como cultura. No campo da Antropologia, a
terminologia “cultura” corresponde aos diversos modos de vida, valores
e significados compartilhados por diferentes grupos e períodos histó-
ricos. Apresenta-se também, em práticas culturais, atividades coletivas
que variam de grupo social para grupo social. É uma prática social en-
tendida não como um fazer (artes) ou estado de ser (civilização), mas
como conjunto de práticas por meio das quais significados são produzi-
dos e compartilhados em um grupo (MOREIRA; CANDAU, 2007).
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Especificidades da Criança
Quando um grupo compartilha uma cultura, socializa um conjunto de
significados construídos, ensinados e aprendidos por meio de suas lin-
guagens. É assim que também acontece na infância. A cultura é firmada
a partir do que é produzido por e para as crianças através das produções
simbólicas que estão associadas às interações, às brincadeiras, à fan-
tasia, etc. Assim, a capacidade que a criança tem de significar o mundo
e constituir seus modos próprios de ser e de agir, contribuindo com a
transformação dos espaços que ocupa, configura-se em cultura infantil.
Nesse sentido, as crianças
produzem cultura, pois são capazes de in-
ventar, ampliar os modos de se relacionar com o mundo e compreender
como este funciona.
A Cultura da Infância é marcada pela ludicidade, produzida nas intera-
ções entre pares e
intergeracionais, nas brincadeiras
e linguagens in-
fantis. Caracteriza-se por seu caráter coletivo – é no interior do grupo
de crianças que estas coletivamente produzem uma cultura singular. Os
produtos da cultura infantil expressam esse caráter coletivo de participa-
ção. A materialidade do produto – fruto das interações coletivas – é tão
importante quanto o processo de produção.