CONSIDERAÇÕES FINAIS: A RELIGIÃO E A CONSTRUÇÃO NACIO-
NAL NOS EUA
Em 20 de novembro de 2012, ao proclamar o Dia de Ação de Graças, o Presidente Barack
Obama, reforçou os valores tradicionais que se ligam ao caráter identitário da nação associan-
do-os à comemoração da data. Ao reviver as tradições que são expressas nesta rememoração
dos primeiros tempos o Presidente dos Estados Unidos assim se dirigiu ao povo:
Muitos Dias de Ação de Graças nos ofereceram a oportunidade de celebrar a comu-
nidade durante tempos difíceis. Quando os peregrinos na colônia Plymouth agrade-
ceram pela colheita abundante há quase quatro séculos, eles saborearam os frutos
do seu trabalho com a tribo Wampanoag – um povo que compartilhou seu conheci-
mento vital da terra nos meses difíceis que antecederam aquele momento. Quando o
presidente George Washington marcou o primeiro Dia de Ação de Graças da nossa
democracia, ele pediu ao Criador por paz, união e força para enfrentar os desafios
que com certeza viriam. E quando nossa nação foi tomada pelo ódio e pela guerra
civil, o presidente Abraham Lincoln nos lembrou de que éramos, na essência, uma
nação, compartilhando um vínculo como americanos que poderia ser dobrado, mas
não quebrado. Essas expressões de unidade ainda ecoam hoje, seja nas contribuições
que as gerações dos nativos americanos deram ao nosso país, a União pela qual nos-
sos antepassados lutaram tão bravamente para preservar ou a providência que reúne
nossas famílias este ano.
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O discurso presidencial recoloca, em dias atuais, a possibilidade de se atribuir à religião im-
portante papel na construção simbólica do mundo, tal como é apontado por Berger (1985). A
sociedade, entendida como produto humano, é um empreendimento de construção do mundo,
segundo Berger (1985). Ela é produto do homem e age sobre a formação do homem, existindo
desde o nascimento até a morte do homem.
Para Berger (1985), a sociedade por ser um produto humano é um fenômeno dialético o qual é
processado por três momentos: a exteriorização entendida como a “contínua efusão do ser hu-
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mano sobre o mundo” (1985, p. 16); a objetivação que é “a conquista por parte dos produtos
dessa atividade de uma realidade que se defronta com os seus produtores originais” (idem); a
interiorização que é “a reapropriação da mesma dessa mesma realidade por parte dos homens,
transformando-as novamente de estruturas do mundo subjetivo em estruturas da consciência
subjetiva” (idem, ibidem). Este processo dialético está presente no discurso presidencial quan-
do em outra passagem Barack Obama usa como referência o presente
Ao refletimos sobre nossa orgulhosa herança, vamos agradecer àqueles que
a honraram, retribuindo. Neste Dia de Ação de Graças, milhares de milita-
res, homens e mulheres, ainda se sentam para a refeição longe de seus entes
queridos e do conforto de seus lares. Nós agradecemos por seu serviço e
sacrifícios. Também demonstramos nosso agradecimento aos americanos que
estão servindo em suas comunidades, assegurando que seus vizinhos tenham
uma refeição quente e um lugar para ficar. Suas ações refletem nossa crença
antiga de que somos os defensores de nossos irmãos e irmãs e elas reafirmam
que somos um povo que busca nossa força mais profunda não no poder e na
riqueza, mas em nosso vínculo uns com os outros.
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A ideia de que o ser humano é exteriorizante por essência e desde o início, ao tornar-se ho-
mem o individuo desenvolve uma personalidade e assimila a sua cultura à construção do mun-
do pode ser vista nesta passagem da proclamação presidencial. Nela fica claro que o homem
ao buscar equilíbrio acaba por construir o mundo, e este mundo construído influencia no equi-
líbrio que o homem busca, construindo assim um mundo humano, pois a cultura, que é senão
a totalidade dos produtos do homem (BERGER, 1985).
Dentre as formações culturais do homem e como condição necessária desta encontra-se a so-
ciedade, também inerente ao homem, é constituída e mantida por seres humanos em ação, é a
evidencia da sociabilidade do homem. Tanto as socializações como a continuação da existên-
cia cultural do homem dependem da manutenção de dispositivos sociais específicos. O mundo
cultural é tanto real quanto produzido coletivamente, e induz a uma existência compartilhada
no campo da realidade. Ao exteriorizar, em seu discurso, os valores nacionais o Presidente dos
Estados Unidos também fixa parâmetros pelos quais podem se manifestar a objetivação e a
interiorização dos valores que envolvem o Dia de Ação de Graças, pois ele inicia sua procla-
mação referenciando-se naquilo que o norte-americano toma como seu elemento estruturante
do seu caráter nacional, assim se expressando:
No Dia de Ação de Graças, americanos em todos os lugares se reúnem com
seus familiares e amigos para celebrar as alegrias e as bênçãos do último
ano. Esse dia é o momento de fazer um balanço da sorte que tivemos e da
bondade que compartilhamos, agradecidos pela abundância que Deus nos
concedeu e que enriquece nossas vidas. Nesse momento em que muitos
fazem uma pausa para estender a mão aos necessitados, também somos lem-
brados do indelével espírito de compaixão e responsabilidade mútua que nos
distingue como nação desde seus primórdios.
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Nesta passagem a cultura é apresentada de forma objetiva por “defrontar ao homem como um
conjunto de objetos do mundo real existente fora de sua consciência (...) também é objetiva
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porque pode ser experimentada e aprendida (...) em companhia” (Berger, 1985, p. 22). O pro-
cesso de objetivação possibilita à sociedade configurar como algo alheio à atividade humana,
participante de uma inércia natural. O mundo humanamente produzido não pode ser nova-
mente reduzido à subjetividade humana, torna-se realidade objetiva adquirida dos produtos
culturais do homem.
A objetividade caracteriza tanto os elementos materiais quanto os não materiais da cultura.
Tanto materialmente quanto não conscientemente os elementos criados pelo próprio homem
podem limitar suas ações ou induzir o homem a atividades e conceituações não previstas ou
desejadas. “A sociedade é um produto da atividade humana que atingiu status de realidade ob-
jetiva” (idem, p. 21) é opaca, pois nem sempre o homem é capaz de subjetivamente entender
os fenômenos sociais que se processam diante dele. Tem por assim dizer uma facticidade, e
sendo coercitiva em relação à subjetividade humana, atuando como medida de controle social.
O grau de objetividade obriga o individuo a reconhecer determinada construção social como
real, a coerção fundamentada pela objetivação se opera realmente na inquestionabilidade do
reconhecimento da realidade de determinada construção social muito mais que nos mecanis-
mos de controle social. A realidade objetiva permitirá ao indivíduo um habitat, onde a vida do
individuo se desdobrará diante desse mundo. A vida do homem só existe em relação à socie-
dade objetivamente real.
Quanto à interiorização “é antes a reabsorção da consciência no mundo objetivado de tal
maneira que as estruturas desse mundo vêm a determinar as estruturas subjetivas da própria
consciência” (idem, p. 28). Estes sentidos objetivos apreendidos pelos indivíduos modelam a
formação dos seres humanos e são modelados por eles, sendo então representado e exprimido
pelos indivíduos. “O processo de interiorização deve sempre ser entendido como apenas um
momento do processo dialético maior que também inclui os momentos da exteriorização e da
objetivação” (BERGER, p. 31).
O pressuposto de Berger de que quanto mais congruência entre a realidade e o mundo subjeti-
vo do individuo maior será o êxito da socialização, aplica-se ao culturalismo norte-americano.
Os fundamentos do culturalismo nos Estados Unidos reforçam a ideia de que a interiorização
dos sentidos da sociedade determina a persistência desta no tempo, principalmente nas formas
hegemônicas de sua existência. A identidade de cada cidadão norte-americano é construída
a partir dos mesmos processos de interiorização do mundo socialmente objetivado, a identi-
dade do individuo é construída alicerçada na realidade social subjetivamente apreendida, são
produzidas na mesma dialética “entre os indivíduos e aqueles outros significados que estão
encarregados de sua socialização” (idem), e a primeira é condicionada à segunda, o individuo
só é enquanto os outros o veem como tal, daí a necessidade de celebrar os fundamentos da
identidade nacional, como o Dia de Ação de Graças.
Os processos de celebração, em especial as paradas cívicas do Dia da Independência e as co-
memorações familiares no Dia de Ação de Graças, possibilitam a construção da concepção
de um mundo subjetivo e das identidades e também a manutenção desta construção. A cele-
bração forma o indivíduo que também participa desta, trata-se de uma interação mutuamente
construtiva. A plasticidade da celebração possibilita a imposição da ordem sobre a experiência
cotidiana, anulando possíveis tensões: “agora torna-se compreensível a proposição de que o
mundo socialmente construído é acima de tudo uma ordenação da experiência. Uma ordem
normativa ou nomos é imposta às experiências e sentidos discretos dos indivíduos” (Berger, p.
32).
Tanto objetivamente como subjetivamente o mundo social constitui um nomos. O nomos é a
mais importante função da sociedade, o nomos objetivo é interiorizado no decurso da sociali-
zação, o individuo torna-o sua própria ordenação subjetiva da experiência. O nomos permite a
vivencia experimental do individuo dotada de sentido e o reconhecimento de sua identidade, a
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celebração do Dia de Ação de Graças, nesse sentido reforça a ideia de gratidão por pertencer
àquela comunidade, como é dito pelo Presidente:
No Dia de Ação de Graças, pessoas de todas as origens se reúnem para celebrar essa
principal tradição americana, gratos pelas bênçãos da família, da comunidade e do
país. Vamos passar esse dia encorajando aqueles que amamos, conscientes da graça
que nos foi concedida por Deus e por todos aqueles que tornam nossa vida mais rica
com sua presença.
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O indivíduo que se recusa a reconhecer a graça é colocado em estado de anomia. Para Berger
(1985) a anomia é caracterizada como um estado de terror. Junto ao nomos os programas ins-
titucionais atuam como algo inevitável na sociedade, a confirmação da ordem universal das
coisas, definindo o ‘ser americano’.
Quando o nomos surge como uma condição natural e inevitável que ultrapassa os esforços
históricos dos seres humanos, faz surgir um cosmo sagrado, que define no mundo profano o
papel da religião: “a religião é a cosmificação feita de maneira sagrada. Por sagrado entende-
-se aqui uma qualidade de poder misteriosos e temeroso, distinto do homem e todavia relacio-
nado com ele, que se acredita residir em certos objetos da experiência” (BERGER, p. 38). A
possibilidade de nomia é reforçada pelo ideal comunitário que envolve as celebrações do Dia
de Ação de Graças nos Estados Unidos, como é dito pelo Presidente:
AGORA, PORTANTO, EU, BARACK OBAMA, presidente dos Estados Unidos da
América, em virtude da autoridade que me é concedida pela Constituição e pelas leis
dos Estados Unidos, pelo presente, declaro a quinta-feira, 22 de novembro de 2012,
o Dia Nacional de Ação de Graças. Encorajo as pessoas dos Estados Unidos a se
reunirem – seja em suas casas, locais de oração, centros comunitários ou outros lo-
cais de encontro, com seus amigos e vizinhos, e agradecerem por tudo o que recebe-
mos no último ano, expressando nosso carinho por aqueles cujas vidas enriquecem
nossa própria vida e compartilhando nosso vínculo com os demais.
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Apesar de distinto do homem o sagrado refere-se ao homem, dota sua existência de signifi-
cado, e cria um sentido de comunidade, porém isso implica também em dizer que o sagrado é
capaz de ser domesticado e utilizado para suprir as necessidades sociais de criação de padrões
comportamentais. A religião, neste caso, permite ao homem desvirtuar-se da desordem ao do-
tar de significação humana o universo inteiro.
Assim, para Berger, dentre os “diversos processos que sustentam a existência social, a legiti-
mação elenca-se como o ‘saber’ socialmente objetivado que serve para explicar e justificar a
ordem social” (BERGER, 1985, p.42). A legitimação pertence ao domínio das objetivações
sóciais, são cogitações de caráter pré-teóricas coletivamente aceitas. Partem de uma base
real a genuína (cognoscitiva) para dar significado a proposições normativas. A repetição das
formulas legitimadoras, como as apresentadas no discurso presidencial, permitem o não es-
quecimento dos indivíduos e uma possível crise coletiva ou individual, serve para manter
posicionamentos num momento contra fático, reforçando a aceitação daquilo concebido como
realidade.
A legitimação ocorre em diversos níveis. Entre o nível da facticidade autolegitimante e o das
legitimidades secundárias. Dentro das últimas há ao nível pré-teórico, um incipientemente
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teórico, legitimações explicitamente teóricas e por fim as construções altamente teóricas,
quando o nomos da sociedade atinge uma consciência teórica. Apresenta também um aspecto
objetivo e um subjetivo: existem como definições disponíveis da realidade, objetivamente
válidas. Efetivam-se a partir da interiorização e da apreensão é capaz de influir na realidade
subjetiva. A religião, entendida como um dos mecanismos de legitimação, mantém a realidade
socialmente definida de forma eficaz ao relacionar a realidade suprema com a realidade em-
piricamente construída pelas sociedades. A grande capacidade da religião está no fato de ser
desconsiderado seu caráter de construção humana, estas legitimações religiosas permitem a
aceitação ontológica das instituições como sagradas em cósmicas.
Mesmo com o desenvolvimento das sociedades, a secularização da realidade, como ocorreu
nos Estados Unidos, a religião continua a ser o principal mecanismo de legitimação. A legiti-
mação religiosa “pretende relacionar a realidade humanamente definida com a realidade últi-
ma, universal e sagrada” (BERGER, p. 48) como demonstra as celebrações do dia de Ação de
Graças, gerando a cosmificação das estruturas nômicas, das instituições e dos papeis sociais,
fundamentalmente de uma moral conservadora que rege o ideal de família no país, reforçando
as formas tradicionais das relações de gênero.
Isto permite conceber as instituições como óbvias, inevitáveis, duráveis e firmes tal qual fora
no passado, no qual a virtude feminina está no cuidado dos enfermos e na manutenção da fé
religiosa, pela sua abnegação e o poder masculino fundado em formas de solidariedade mecâ-
nica no interior da comunidade nacional, criando uma auto identidade conservadora e sexista.
Além disso, a celebração permite que o indivíduo reconheça suas ações como algo além de
construções meramente humanas. Assim, a religião acaba por se enraizar no dia a dia, na
construção e valorização das atividades cotidianas como herdeiras de um passado que valoriza
o presente.
A religião mantém a realidade através de um processo dialético entre a atividade religiosa e a
ideação religiosa, baseada na virtude cristã da gratidão. Contrapor-se à ordem da sociedade é
ir de encontro à anomia e ao irreal, contrapor-se à ordem religiosa é pecar, se aliar ao mal, a
um submundo ou antimundo com realidade diversa da convencionada, o que desvirtua o cará-
ter da nação e seu destino/missão.
Quanto ao ritual, na forma de celebração do Dia de Ação de Graças, é a forma mais eficaz-
mente utilizada para rememorar o homem dos significados tradicionais do passado da nação.
Ele está intimamente relacionado à reiteração de fórmulas sagradas do Destino Manifesto.
Serve como elo entre o presente e as tradições da sociedade desde os tempos coloniais. Nes-
te sentido, quando a realidade da vida cotidiana é posta em dúvida a religião aparece como
mecanismo integrador entre as diferentes esferas das realidades, a religião, assim, permite a
integração da realidade legitimada e as realidades marginais, estabelecendo uma realidade
cosmológica única, permitindo a convivência entre os diversos segmentos sociais, evitando,
com isso, um colapso cognoscível nos indivíduos.
Por fim, o Dia de Ação de Graças nos Estados Unidos, permite dizer que a solidariedade so-
cial e o ideal de comunidade tornaram-se elementos fundamentais relacionados à religião. O
ideal cristão e puritano de gratidão e submissão estão intimamente ligados ao combate ao caos
social e à anomia. Pois, principalmente nos momentos de caos a união dos homens é mostra-
da como o fator que mais evidencia o poder da religião, como pode ser exemplificado pela
institucionalização do Dia de Ação de Graças como feriado nacional nos Estados Unidos por
Lincoln em 1863.
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