Pelo Presidente dos Estados Unidos da América: uma Proclamação.
Considerando que todas as nações têm o dever de reconhecer a providência do Deus
Todo-Poderoso, obedecer à Sua vontade, agradecer-lhe pelas suas dádivas e humil-
demente implorar o Seu favor e proteção – e considerando que ambas as Câmaras
do Congresso, pelo seu Comitê conjunto me pediram para ‘recomendar ao povo
dos Estados Unidos um dia público de ação de graças e oração para ser guardado,
reconhecendo com corações agradecidos os muitos favores do Todo-Poderoso, es-
pecialmente ao permitir-lhe uma oportunidade pacífica de estabelecer uma forma de
governo para a sua segurança e felicidade’.
Assim, recomendo e assino que a próxima quinta-feira, 26 de Novembro, seja dedi-
cada pelo Povo destes Estados ao serviço desse grande e glorioso Ser, que é o autor
carinhoso de todo o bem que existiu, existe e existirá – Que possamos todos unidos
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render-lhe humildemente as nossas sinceras e humildes graças – pelo Seu amável
cuidado e proteção com o Povo deste País antes de tornar-se uma Nação – pelas suas
muitas e notáveis misericórdias, e pelas intervenções da Sua Providência, as quais
experimentamos pela tranquilidade, união e fartura que temos desfrutado – pela
forma pacífica e racional como conseguimos estabelecer constituições de governo
para a nossa segurança e felicidade, em particular pela Constituição Nacional insti-
tuída recentemente – pela liberdade civil e religiosa com a qual somos abençoados;
e pelos meios que temos para adquirir e transmitir conhecimentos úteis; e em geral
por todos os grandes e variados favores que Ele teve o agrado de nos conferir (WA-
SHINGTON, on-line).
A independência e a posterior construção do Estado Nacional equivalem a um período, tal
como define Bauman (2003, p. 35) de “grande engajamento”. No entanto, segundo Ruiz
(2003) “a alteridade é a referência primeira e concomitante à constituição da própria identida-
de” (p.55). Este autor considera que a formação da identidade é sempre marcada por um cará-
ter paradoxal de proximidade e distanciamento. O que ele chama de paradoxo da autoconsci-
ência é resultado de uma fratura que separou o homem do mundo natural, o que possibilitou
que a “humanidade possa existir como espécie qualitativamente diferente do resto” (p.57).
O conceito de fratura tal como foi elaborado por Ruiz (2003) é fundamental para compreen-
dermos a institucionalização do Dia de Ação de Graças como feriado nacional por Lincoln em
1863, em plena Guerra de Secessão, evento que ameaçou a unidade nacional e exigiu esforço
ainda maior de engajamento. Tal conceito define a especificidade desse acontecimento na his-
tória do país, considerando que é neste momento, no qual o arranjo político interno mostrava
sua fragilidade, que a importância de se afirmar a identidade nacional no homem americano,
enquanto indivíduo e como sociedade, fez-se premente, pois a tensão resultante da separação
fez expandir a necessidade de afirmação da consciência nacional. Considerando que a consci-
ência nada mais é do que uma construção de sentido, Lincoln não poupa esforços em impedir
a fratura do Estado nacional. Reafirmando a nação como dádiva divina, em um esforço para
aquilo que Bauman (2003) aponta como voltar à comunidade de origem. Como demonstra sua
proclamação:
No meio de uma guerra civil de magnitude e gravidade ímpares, que em alguns
momentos pareceu sugerir a invasão e agressão de Estados estrangeiros, a paz tem
sido preservada com todas as nações, a ordem tem sido mantida, as leis têm sido
respeitadas e obedecidas, e a harmonia tem prevalecido em todos os lugares exceto
nos cenários de conflito militar; ainda que esses cenários tenham sido grandemente
reduzidos pelo avanço do exército e da marinha da União. Os desvios necessários
de riqueza e mão-de-obra dos campos de indústria pacífica para a defesa nacional
não detiveram o arado, o autocarro ou o navio. O machado alargou as fronteiras do
nosso território e as minas, tanto de ferro como de carvão e metais preciosos, têm
produzido mais abundantemente que no passado. A população aumentou solidamen-
te, apesar dos desperdícios feitos nos acampamentos e campo de batalha; e o país,
regozijando-se na consciência do seu aumento de força e vigor, pode esperar conti-
nuidade de anos com vasto aumento da liberdade.
Nenhum conselho humano idealizou, nem nenhuma mão humana concebeu estas
grandes coisas. Elas são dádivas graciosas do Deus Altíssimo que, ainda que furioso
com os nossos pecados, não deixou de mostrar misericórdia (LINCOLN, online).
Para Ruiz (2003) as pontes de sentido podem resultar em uma sutura simbólica da fratura,
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como uma representação instituída do mundo real. As reflexões de Bhabha (1998) sobre as
diferenças culturais conduzem teoricamente à consideração de que, contudo, nem sempre os
instrumentos legitimadores do poder político e da dominação cultural são inteiramente efica-
zes, pois, segundo este teórico:
Os termos do embate cultural, seja através do antagonismo ou afiliação, são pro-
duzidos performativamente. A representação da diferença não deve ser lida apres-
sadamente como o reflexo de traços culturais étnicos preestabelecidos inscritos na
lápide fixa da tradição. A articulação da diferença, da perspectiva da minoria, é uma
negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridis-
mos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O “direito” de
se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende
da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever
através das condições de contingência e contrariedade que presidem sobre a vida dos
que estão na “minoria” (BHABHA, 1998, p. 20 - 21).
Entretanto, no nacionalismo norte-americano, pode-se claramente perceber a religião como
uma teia de significados que resultaram na construção de uma identidade nacional como uma
unissonância, o que para Benedict Anderson (2008) implica em uma coesão cultural que liga
os sujeitos nacionais através do imaginário, alicerçada nas concepções de liberdade e justiça
como dádivas e não como construção social. Segundo Bhabha “o momento histórico da ação
política deve ser pensado como parte da história da forma de sua escrita” (1998, p. 48).
Portanto, como expressão da ação política é importante ressaltar o conceito de ambivalência
cultural de Bhabha (1998). Para o autor a ambivalência decorre dos processos de dominação e
imposição de padrões culturais inerentes à colonização europeia, fruto do “reconhecimento da
diferença como pontos ‘imaginários’ de identidade e origem” (BHABHA, 1998, p. 124). As
diferenças étnicas e de gênero são traduzidas em formas significantes pelas quais segmentos
sociais são inferiorizados no discurso colonizador naquilo que este autor chama de ‘disjunção
mítica’, possibilitando a sua exclusão em relação aos direitos e à cidadania. Para o autor existe
uma ambivalência entre diversidade cultural e diferença cultural, pois:
A diversidade cultural é um objeto epistemológico – a cultura como objeto de co-
nhecimento empírico –, enquanto a diferença cultural é o processo de enunciação da
cultura como “conhecível”, legítimo, adequado à construção de sistemas de iden-
tificação cultural. Se a diversidade é uma categoria da ética, estética ou etnologia
comparativas, a diferença cultural é um processo de significação através do qual
afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a
produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade (BHABHA,
1998, p. 63).
Em uma sociedade liberal como a estadunidense no século XIX certos atores sociais, como os
negros e as mulheres, podem ser vistos como o que Bhabha (1998) chamou de ‘quase o mes-
mo’, mas não ‘exatamente’. No contexto político e social, negros e mulheres não se tornaram
sujeitos nacionais, pois a autoestima nacional continuou sendo essencialmente branca e mas-
culina, isto é, os gostos, as opiniões, a moral e o intelecto da nação não foram substancialmen-
te alterados, alienando os pressupostos da liberdade civil que moldaram o caráter nacional,
conforme o que este autor chamou de fetiche.
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Bhabha afirma que o espírito da nação ocidental “foi simbolizado no épico e no hino, vocali-
zado por um ‘povo unânime reunido na autopresença de sua fala” (1998, p. 139). Nesse senti-
do, a instituição do Dia de Ação de Graças como feriado nacional reforçou o processo de ame-
ricanização do homem americano, como uma necessidade de se criar um referencial indife-
renciado do imaginário nacional, como possiblidade de se pensar a nação como multirracial
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e multicultural, buscando assegurar uma coesão social que ultrapassa as formas históricas de
dominação e diferenciação racial no país.
A memória das experiências religiosas dos fundadores da tradição norte-americana se tornou
o suporte para que fosse institucionalizada uma memória nacional que conforma aos padrões
sociais todos os sujeitos nacionais. Embora a distinção entre passado e presente seja funda-
mental na institucionalização da experiência religiosa, a celebração do Dia de ação de Graças
ocorre devido ao interesse em preservar uma experiência religiosa original, que dá significado
a ideia de povo como uma comunidade nacional. Nesse sentido, o processo de institucionali-
zação, pode-se dizer, fixa a relação do presente com o passado, tornando-a difusa, pois, a de-
finição da estrutura do tempo presente se alicerça nas sombras do passado e, também, indica
um futuro como outra dimensão temporal (FERNANDES; DA MATTA, 1988).
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