O Corpo da história
Tales A.M. Ab´Sáber
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Há algo de realmente perturbador em Corpo, filme de Rubens Rewald e Rosana
Foglia que estréia na cidade. A mistura inventiva de peso e leveza, melancolia e gozo
ligeiro da vida, passado violento e presente falsamente pacificado é muito sugestiva de
momentos importantes da reflexão e das formas estéticas que chegaram a tocar algo
profundo de nosso país. Apenas para lembrarmos um ponto de fuga original e marcante
deste tipo de formulação, ela também apareceu, conscientemente, como projeto estético
moderno, a mais de cento e vinte anos atrás em Machado de Assis. E também em Mário de
Andrade nos anos 1920. E também em Glauber Rocha na década de sessenta... Estamos
navegando em águas estéticas densas, de longa tradição, mas que o filme atualiza ao seu
modo, de forma contemporânea, simples e agudo.
Se se tratasse apenas de uma das poucas obras no período democrático que indaga a
política simbólica de conciliação com o irreconciliável frente ao grotesco político e humano
da ditadura militar brasileira, o filme já teria grande interesse. Ele quer saber do corpo
desaparecido, e seu recalque de direitos e modernidade, que a ditadura humilhou e destruiu,
e que nossa democracia em termos esqueceu e humilhou. De fato a demanda por justiça
frente aos corpos que ainda esfriam da ditadura militar no Brasil foi transformada em mais
um mercado privado, um calaboca particular de indenizações que parecem repor a
dimensão de privilegio, daquilo que deveria ser uma política de ética pública, de valor
universal. Mais uma vez o Brasil arcaico se sobrepôs a qualquer plano de constituição de lei
simbólica comum.
O filme indaga de modo engenhoso o pacto geral de silêncio e desinteresse de nossa
classe média frente os restos putrefatos de nossa própria história que, de repente, emergem
intactos, demandando nomeação e reparação humana básica. Muito diferente, radicalmente
diferente, do processo histórico de direito à transparência e a justiça desenhado por A Vida
dos Outros, por exemplo, frente às tragédias da degradação final do socialismo “realmente
existente” alemão. E também do processo de julgamento real dos crimes ocorrido em países
que também viveram o processo histórico de ditaduras pró capitalistas nos anos de 1970,
como o Chile e a Argentina. O Brasil, neste quesito, como em tantos outros, é, e parece que
sempre será, o campeão do atraso. Quanto a este drama histórico, que nos compromete, o
filme é elegantemente preciso, e muito firme.
Mas o que mais interessa no filme é a projeção desta história de catástrofes nas
estruturas subjetivas dos dois personagens que tecem a sua fabulação. O médico de
quarenta anos, cidadão melancólico, homem moderno liquidado, com seu trabalho público
alienado ao extremo, algo ressentido e muito negativo e a garota de vinte e poucos anos,
liberta para o consumo e o mercado, pós moderna cínica e narcísica, volúvel, caprichosa e
na moda. Os dois encenam as modalidades possíveis de absurdo que a vida se tornou entre
nós, em um embate entre passado e presente que não encontra mais um fio possível de
continuidade.
Este fio, que ligaria estas formas excludentes e impossíveis uma a outra, que talvez
um dia tenha sido o significante histórico e político nação, é o corpo insepulto, violentado,
que fala algo de nossa verdade profundamente violenta, e que, ao que tudo indica,
continuará sempre lá, aí, para não ser vista.
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Psicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae,
Autor de O Sonhar Restaurado (Ed. 34, Prêmio Jabuti 2006)