O “acontecimento” segundo a história
Gustavo Chataignier Gadelha
Data de submissão: 27 out. 2010
Data de aprovação: 19 fev. 2011
Resumo
Este trabalho se insere em nosso estudo doutoral, onde retomamos alguns pontos
do pensamento histórico de modo a propor uma melhor compreensão dos
impasses estratégicos contemporâneos. Isto posto, no quadro do presente artigo,
apresentamos uma exposição da Arqueologia do saber, de Michel Foucault, como
partida para uma confrontação com uma leitura que permite a conjugação entre
continuidade e ruptura. O objetivo sendo o de, dialeticamente, superar o conceito
de “acontecimento”, nos apoiaremos sobre um universo teórico apontando para a
categoria de “possibilidade” Ŕ à luz tanto de pensadores contemporâneos como
Derrida e Ricœur como de Nietzsche e, por outro lado, Hegel e os marxismos.
Finalmente, as reflexões de Koselleck nos darão algumas pistas na direção de um
pensamento que reune estrutura e acontecimento em termos historiográficos.
Palavras-chave:
História; acontecimento; continuidade; ruptura; possibilidade.
Résumé
Ce travail s‟inscrit dans le cadre de notre recherche doctorale, où nous reprenons
quelques enjeux de la pensée historique en sorte à y proposer une compréhension
des impasses stratégiques contemporains. Ceci dit, cet article présente un exposé
de L’archéologie du savoir, de Michel Foucault, en tant que début d‟une confrontation
d‟avec une autre lecture qui permet la conjugaison entre continuité et rupture. Le
but en étant celui de, dialectiquement, surmonter le concept d‟ “événement”, nous
nous appuierons sur l‟univers théorique ouvert par la modalité de la “possibilité” -
sous la lumière de penseurs contemporains tels que Derrida et Ricœur aussi bien
que Nietzsche, mais également de Hegel et les marxismes. Finalement, les
réflexions de Koselleck nous donnerons quelques pistes qui s‟acheminent dans la
direction d‟une pensée qui rassemble structure et événement sous l‟égide de
l‟historiographie.
Mots-clefs:
Histoire; événement; continuité; rupture; possibilité.
Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris VIII como bolsista do Programa Alban
de bolsas de alto nível da União Europeia para a América Latina, sob orientação de Daniel
Bensaïd (1946-2010) e de Patrice Vermeren.
Ano III, número 2, jul.-dez. 2010
66
Introdução
O pensamento contemporâneo parece ter abandonado a história. Pelo
menos se dermos ouvidos aos arautos da filosofia, a verdade do ser já teria
sido descoberta. Nada de processo, de economia, de conflito, de
subjetividade, de partido ou coisa que o valha: a “inocência do devir” tomou
conta do pedaço
1
. O triste quinhão desta história se oferece à contemplação
de um pensamento que trocou a luta pela pequena moeda da (necessária,
mas não suficiente) “crítica do sujeito”
2
. Ora, tal postulado nos soa deveras
idealista, no sentido em que a realidade é interpretada à luz de uma
determinação ideal, quiçá estrutural. Teremos a oportunidade de voltar a
este tema. Não obstante, este artigo visa a explorar o que há de vivo na
combalida filosofia da história. Em um só tempo, se trata de resgatar
noções a nosso ver essenciais, tais que determinação e contradição, e,
concomitantemente, radicalizar a crítica ao mecanicismo Ŕ que encontra
confortável refúgio nas “pós-preocupações” de hoje.
Isto posto, como “atacar” o problema? Por ora decidimos pela
utilização da dupla conceitual “história” e “acontecimento” (l‟événement),
como a pedra de toque para uma tal empreitada. De certa forma, é também
um meio de se inscrever no debate contemporâneo, já que o
“acontecimento” é empregado em larga medida por pensadores franceses,
cuja influência se faz sentir em todo o escopo do universo intelectual. O
importante é notar que não se trata de uma acusação de “erro” ou
tampouco de esnobismo em relação à “heterodoxia”; mas, antes, é algo que
tem que ver mais com uma contribuição, com um complemento às críticas
identitárias, do que com proselitismo e oportunismo. Se existem “os”
marxismos, no plural, como escrevera Derrida (1993, p. 20), não é menos
certo que é uma “falta de responsabilidade, filosófica e política, não ler
Marx”; ao quê ele conclui: “não haverá futuro sem isto. Não sem Marx,
nenhum futuro sem Marx” (Derrida, 1993, p. 36). Assim, rondados por
1
Parafraseando o funk carioca de grande sucesso, “tá tudo dominado!” (Tá tudo dominado!,
composição de SD Boys, letra disponível em: < http://letras.terra.com.br/furacao-
2000/206541/ >).
2
A isso Lukács, tomando um conceito emprestado de Thomas Mann, chamou de
“intimismo à sombra do poder” Ŕ que se aplica em boa parte da discussão “ética”
contemporânea e pós-moderna. Sem poder influir nas mudanças sociais, decididas por
reuniões de cúpula das classes dominantes, a intelectualidade evade-se da realidade concreta
ao tentar criar um nicho cuja autonomia é falsa Ŕ respeitada por não colocar em xeque as
questões decisivas da propriedade privada. Este prestígio auferido pelo conhecimento
separa o intelectual, geralmente quadro da pequena burguesia, das camadas populares
(Coutinho, 1990, p.71-72).
Trilhas Filosóficas
67
espectros e circunstâncias, damos voz a Beckett (1983) e seu imperativo
nada categórico de “errar melhor”
3
.
Portanto, a estratégia deste texto consistirá em, primeiramente, expor
algumas teses da filosofia francesa contemporânea; em um segundo
momento, passaremos à análise crítica de tais postulados, ao fim do quê
faremos um breve comentário de perspectivas historicisantes para além da
mal fadada metafísica.