of Trial. The University of Chicago Press, 1984.
9
. ROBERTSON, James Oliver. American Myth, American Reality. New York: Hill &
Wang, 1994.
85
No outro momento fundador, o da independência, os ingredientes
religiosos são também facilmente identificáveis. A idéia central era a de
que a República eqüivalia a um regime da virtude e do auto-sacrifício,
devendo a nação seguir o modelo de uma “Esparta Cristã”. De acordo
com essa lógica simbólica, a sobrevivência da nação dependeria de uma
moralidade social que incluiria valores como lealdade, honestidade,
preocupação com a comunidade e frugalidade, por oposição ao puro
individualismo e à dissipação. Certamente mais visível no passado, essa
moral religiosa não se extinguiu com a secularização e o Iluminismo e
acabou por invadir o século XX, resistindo até os nossos dias.
Parece surpreendente que ainda sobrevivam nos EUA prosaicas
organizações como a “Society for the Supression of Vice” ou as “Legion
for Decency”. O recente escândalo sexual que envolveu o presidente
Clinton, ameaçado de sofrer impeachment pela acusação de mentir ou
induzir à mentira em juízo, é outro exemplo dessa peculiar moralidade
pública.
Mas o fervor moral não se expressa apenas através de uma rígida
separação entre o bem e o mal, traduzida em condenações e restrições
comportamentais.
Na década de 60, os Corpos da Paz encarnariam um ideal de
serviço e ação social vinculado a padrões morais indiscutivelmente
decorrentes da tradição puritana, mas que no entanto atraiu voluntários de
diferentes orientações religiosas e políticas, inclusive integrantes da New
Left.
É claro que formalmente, a dissociação entre os Corpos da Paz e
a religião era forçosa pela Primeira Emenda
10
. Mas, independente do fato
do proselitismo religioso não ser admitido nos Corpos da Paz, a idéia
cristã do amor e do serviço ao próximo era ressaltada por todos que
apoiavam a criação da agência. Embora alguns parlamentares
considerassem que os Corpos da Paz estariam assumindo uma missão que
caberia na verdade às Igrejas, a maioria expressou satisfação com a
associação de zelo missionário e devoção à pátria.
10
. Houve inclusive o cuidado de excluir as organizações religiosas dos contratos de
gestão de programas da agência no exterior. Além disso, não havia qualquer campo nos
formulários preenchidos pelos voluntários ao longo do processo de seleção reservado à
indicação de sua religião. Os funcionários eram inclusive orientados a rasurar tais
informações se elas fossem deliberadamente registradas pelo candidato. Mesmo indo
lecionar em escolas religiosas em diferentes países, os voluntários só ministravam
matérias não religiosas. Peace Corps, Washington, DC, Public Information. “Policy on
Peace Corps Relationship with Religious Agencies” - Bush Papers, Box 5, JFK Library.
86
A vinculação entre fervor moral e os Corpos da Paz era
incessantemente enfatizada por Sargent Shriver, cunhado de Kennedy e
primeiro diretor dos Corpos da Paz, cuja importância na definição de um
perfil ideológico para agência foi decisivo. Os inúmeros discursos que
proferiu em vários pontos dos Estados Unidos e pelo Terceiro Mundo a
fora na cruzada em favor dos Corpos da Paz permitem verificar o quanto
a idéia do trabalho voluntário como um dever moral impregnou a
concepção da agência desde o princípio.
Quando se dirigia ao público interno, Shriver freqüentemente
fazia uso de um vocabulário religioso ao alertar para os perigos da
degenerescência da sociedade americana. Em seu apelo para que seus
compatriotas superassem o isolacionismo indiferente e partissem para
ação, exportando os princípios da Revolução Americana, é interessante
notar a tensão entre a busca do outro - diferente mas igual - já que a
universalidade da condição humana é sublinhada -, e o excepcionalismo
dos Estados Unidos, que não deviam deixar de cumprir sua missão de
redimir o mundo, seu “Destino Manifesto”. Nessa clave, os Corpos da
Paz seriam um meio para recuperar a liderança dos EUA no mundo. No
entanto, ao falar a líderes do Terceiro Mundo, sua preocupação era
sempre enfatizar o aspecto educativo da experiência dos Corpos da Paz
para os jovens voluntários norte-americanos, numa postura reverente em
relação à diversidade e riqueza cultural desses povos. Sua intenção era
certamente dissipar temores e qualquer associação entre os Corpos da
Paz, imperialismo cultural
11
e guerra fria. A agência é apresentada como
uma iniciativa desinteressada de auxílio, de solidariedade cristã. Shriver
defendia uma “guerra santa americana contra pobreza”, uma “ação civil
iluminada”, uma “política de obras” inspirada em princípios
humanitários, cívicos e cristãos.
É importante frisar que no contexto da primeira metade dos anos
60, as posições de Shriver se mostram bastante progressistas, não só por
suas ligações com o movimento pelos direitos civis - que aliás foi um
traço característico de toda primeira geração da agência - como também
por sua condição de arauto da ação social da Igreja.
11
. É bom lembrar que naquele momento, em que o processo de descolonização na África
e na Ásia cumpria seu curso, estavam em alta as discussões a respeito do etnocentrismo,
do imperialismo e do relativismo culturais. A Antropologia foi com certeza uma
disciplina chave na década de 60, quando a diferença entre as culturas e os códigos
nacionais e regionais eram afirmados, ao mesmo tempo em que insistia-se numa unidade
universal do homem. É bom lembrar que Raça e História de Lévi-Strauss é de 1961.
87
Shriver, um estudioso do pensamento católico, costumava
invocar os Papas João XXIII e Paulo VI ao advogar a identificação da
Igreja com os pobres. Ele defendia a idéia de que as Igrejas não podiam
deixar de assumir o importante papel que lhes cabia na luta contra a
discriminação racial, a maior de todas as chagas nacionais. Nesse sentido,
a Igreja deveria retomar sua função precípua de conquistar consciências,
devendo não se omitir em relação aos problemas sociais, que teriam na
verdade raízes e implicações morais.
Pode-se perceber claramente como o universo religioso de
Shriver comporta uma interessante composição entre sua fé professada -
o catolicismo - e a ética protestante que o cerca e que sem dúvida
incorpora. Shriver mostra-se bem católico em sua prédica universalista e
em sua rejeição do dogma da predestinação. Mas não poderia ser mais
puritano no seu ascetismo e sua valorização religiosa da ação moral.
Conforme analisa Weber
12
, a valorização das obras como sinal da graça
divina; a imposição da frugalidade por oposição ao consumo desmedido;
a substituição do lazer por trabalho intensivo, em suma um constante
auto-controle e uma obsessiva consideração sobre as conseqüências éticas
de cada ato da vida diária seriam os traços mais característicos do
calvinismo
13
. Os Corpos da Paz representavam para Shriver justamente
uma infusão desses valores espirituais na esfera governamental.
É possível identificar no pensamento deste patriarca dos Corpos
da Paz praticamente uma reprodução do de Tocqueville em sua defesa da
religião como um antídoto para o individualismo e a cobiça, como único
elemento capaz de contrabalançar os efeitos daquilo que denominou de
“despotismo democrático”: situação decorrente de uma preocupação
crescente com a esfera privada da família e dos negócios, levando à
diminuição progressiva do interesse pelo universo da política e a
substituição gradativa da participação pela delegação, com o conseqüente
esvaziamento dos ideais e do sentido público em que o regime
democrático deve se assentar.
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