NA TRILHA DOS 12 PASSOS: UMA PROPOSTA DE RECUPERAÇÃO DA
DEPENDÊNCIA DO ÁLCOOL E DE OUTRAS DROGAS
Pablo Kurlander
1
O INÍCIO
Em maio de 1935 dois alcoólicos tentando se recuperar, William Griffith Wilson
(Bill W.) corretor da Bolsa de Nova York, e Bob Smith (Dr. Bob), médico cirurgião de
Akron, Ohio, se conheceram na casa deste último,
quando o primeiro, em viagem de
negócios, tentava se contatar com outro alcoólico em recuperação, a fim de evitar uma
recaída, como mostra o filme
My name is Bill W. – O valor da vida (2006).
Deste encontro resultou,
pouco tempo depois, a fundação da mais famosa e
mundialmente difundida irmandade de recuperação do alcoolismo: os Alcoólicos Anô-
nimos (AA), que funciona hoje através de “mais de 97.000 Grupos locais em 150 paí-
ses” (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, 2012).
Mas antes dos AA, outros grupos já vinham constituindo-se como organizações
de trabalho em prol da recuperação do alcoolismo e da dependência química, como a-
firmam De Leon (2008), Fracasso (2012) e Goti (1990).
Segundo estes autores, o primeiro destes grupos e ser registrado foi uma organi-
zação religiosa da Inglaterra fundada em 1860, chamada Oxford,
cujo objetivo era o
“renascimento espiritual da humanidade”, buscando um estilo de vida mais fiel aos ide-
ais cristãos, e acomodando de modo amplo todas as formas de sofrimento humano. No
início do século XX, com as suas atividades em alta, os dirigentes do grupo constataram
que aproximadamente 25% dos seus participantes eram alcoolistas em abstinência, o
que acabou dirigindo naturalmente o seu foco de atenção para esta problemática especí-
fica.
Alguns integrantes deste Grupo Oxford influenciaram a formação dos AA. O
filme citado ainda mostra um dos amigos de Bill, chamado Ebby T., que tenta uma e
outra vez ajudá-lo a parar com a bebida, principalmente depois de ter encontrado a “i-
luminação”
num grupo religioso, que seria, segundo De Leon (2008), o Grupo de Ox-
ford.
Assim, através deste alcoólico recuperado, assim como de outros integrantes do
grupo, os fundadores do AA tiveram os primeiros contatos com os princípios espirituais
deste grupo. Também segundo De Leon (2008), quem teria providenciado o famoso
encontro entre Bill e Bob, teria sido Henrietta Sieberling,
uma associada ao grupo Ox-
ford, em Akron.
O mesmo autor afirma que os 12 Passos de AA seriam fruto justamente do con-
tato dos fundadores do AA com os princípios espirituais de Oxford, juntamente com as
experiências que tiveram durante os primeiros passos da sua própria recuperação.
Segundo Burns (2002), o pastor episcopaliano Rev. Samuel Shoemaker criou,
junto com o grupo de Oxford,
um programa espiritual de seis passos, que teria sido o
germe inicial dos futuros 12 Passos de AA.
Em 1953, a iniciativa dos AA dá origem a uma nova abordagem destes mesmos
princípios, quando é criada uma nova associação chamada de Narcóticos Anônimos
(NA), baseada nos mesmos 12 Passos, adaptados agora para a dependência não somente
do álcool, mas também para outras drogas, como é exposto no site oficial da organiza-
ção (NARCÓTICOS ANÔNIMOS, 2012a).
1
Psicólogo, Mestrando em Saúde Coletiva – UNESP Botucatu. Coordenador da Comunidade Terapêutica
Nova Jornada. pablok@novajornada.org.br.
2
Atualmente, estes Passos são utilizados em inúmeros grupos de recuperação de
dependências e compulsões, não unicamente ao álcool e outras drogas, mas também a
tabaco, sexo, amor, comida, jogo, e muitas outras mais
2
.
O estudo dos 12 Passos tornou-se também o estandarte de todas as Comunidades
Terapêuticas (CTs) que se utilizam de algum tipo de programa terapêutico específico,
sendo a base de muitos dos princípios e valores das mesmas.
O Padre Haroldo Rahm (1996), em seu livro que relata a experiência dentro da
APOT
3
, deixa claro como os princípios dos 12 Passos
de AA conduzem o dependente
químico (DQ) através de todo o processo de recuperação, sendo o estudo destes, por
este motivo, de essencial importância para o aprofundamento do processo de recupera-
ção, tanto quanto, ou até mais, que outras abordagens terapêuticas convencionais.
No clássico “Livro Azul”
4
dos AA
5
encontra-se uma audaciosa explicação de
como funciona este programa, aparentemente fundamentado
em conceitos de simples
apreensão, mas de uma profundidade ímpar:
Raramente temos visto fracassar uma pessoa que cuidadosamente seguiu nos-
so caminho. Os que não se recuperam é porque não podem ou não querem se
entregar completamente a este programa simples. Geralmente, homens e mu-
lheres que, pelas suas constituições, são incapazes de ser honestos consigo
mesmos. Existem tais desafortunados. Eles não têm culpa; parecem ter nasci-
do assim. São, por natureza, incapazes de desenvolver um modo de vida que
requeira rigorosa honestidade. Suas “chances” são menores que o comum.
Existem, também, aqueles que sofrem de graves desequilíbrios emocionais e
mentais, embora muitos se recuperem por terem a capacidade de ser hones-
tos. (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, 1955, p. 73).
Apesar da postura evidentemente determinista
6
,
o mais impressionante deste
pensamento é a relevância que a honestidade possui para este programa, e como a recu-
peração parece ser algo não tão complicado quando se é honesto.
Basicamente esta é a proposta dos 12 Passos: ser honesto, desejar o tratamento e
buscar a recuperação. Quando isto se consegue, pode-se festejar a melhora com as pró-
prias palavras de Bill: “Somos como passageiros de um grande navio momentos após
serem salvos de um naufrágio, quando a camaradagem, a alegria e a democracia reinam
por toda a embarcação, desde a mesa mais humilde dos passageiros de segunda à do
capitão” (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, 1955, p. 37).
2
Dentre estes grupos estão: Fumantes Anônimos, Comedores Compulsivos Anônimos, Neuróticos Anô-
nimos, Psicóticos Anônimos, Emocionais Anônimos, Introvertidos Anônimos, Fóbicos Anônimos, De-
pendentes de Amor e Sexo Anônimos, Sexólicos Anônimos, Compulsivos Sexuais Anônimos, Mulheres
que Amam Demais Anônimas, Devedores Anônimos, Jogadores Anônimos, Codependentes Anônimos,
além dos respectivos grupos familiares.
3
Associação Promocional Oração e Trabalho, a segunda Comunidade Terapêutica a ser fundada no Bra-
sil, localizada em Campinas, SP. O Padre Haroldo é também o fundador da Federação
Brasileira de
Comunidades Terapêuticas (FEBRACT).
4
Chama-se de “Livro Azul” porque a capa da primeira edição era inteira dessa cor.
5
Escrito principalmente por Bill W. em 1939.
6
Na época começava a se acreditar que o alcoolismo possuía um caráter hereditário que deixava o alcoó-
lico absolutamente à mercê do seu desejo de beber, constituindo-se praticamente em uma anomalia ce-
rebral, ou coisa semelhante.