São Paulo, Unesp, v. 11, n.1, p. 71-95, janeiro-junho, 2015
ISSN – 1808–1967
5
Segundo Spengemann (1980), a lembrança histórica de si mesmo foi o modelo dominante no
Renascimento e no Iluminismo, quando as recordações do “autor” não são acompanhadas de maior
reflexão sobre a experiência vivida e a sua construção enquanto sujeito, que é exemplificada por
Dante Alighieri. Já a modalidade da autobiografia filosófica, que ganha força no final do século XVIII e
tem em Rosseau seu expoente, problematiza a experiência vivida e a sua relação na construção de
uma personalidade, enquanto, finalmente, a autobiografia poética, que predomina a partir do século
XIX e tem em Charles Dickens seu destaque, amplia o espaço para o plano da expressão e incorpora
elementos da ficção.
6
Citando Misch (1950): “It can be defined only by summarizing what the term ‘autobiography’ implies
– the description (graphia) of an individual human life (bios) by the individual himself (auto).” (p. 5) ou
ainda “As a manifestation of man’s knowledge of himself, autobiography has its basis in the
fundamental – and enigmatical – psycological phenomenon which we call consciousness of self or
self-awareness (in German Selbsbewusstsein). [...] In the certain sense the history of autobiography is
a history of human self-awareness. [...] Growing from this psycological root, the self-revelation of the
personality takes on the most various forms according to the epoch and the individual or social
situation.” (p. 8-9).
7
Foucault (1992) aponta as origens desse modelo discursivo – a escrita de si – na Antiguidade como
um exercício de registro de pensamentos e impressões que teria um caráter confessional, capaz de
purgar faltas morais e fraquezas espirituais, ao mesmo tempo em que ocuparia o lugar de uma
companhia na solidão. Tal exercício, destinado apenas à autocontemplação daquele que escreve e
se descreve, somava-se a muitas práticas pessoais como a abstinência, os exames de consciência,
as memorizações, as meditações, o silêncio e a escuta do outro, etc. O trinômio escrita, meditação e
leitura garantiria a organização de ideias capazes de sustentarem a argumentação e justificarem
decisões concretas que afirmavam diferentes subjetividades.
8
Catelli (1991, p. 54-60), que analisa a forma semântica e retórica na qual se articula o discurso de si
utilizando-se de três referenciais teóricos sobre o tema (o linguístico-retórico de Paul Le Man, o neo-
hegeliano de Bakhtin e o contratual e enciclopédico de Lejeune), aponta os limites do “pacto
autobiográfico” como normativa genérica que deriva de uma descrição ampla demais da precariedade
do pacto e de sua ambição de legitimidade, que assemelha sua aplicabilidade crítica a uma operação
investigativa do tipo detetivesca. Cordón (1997, p. 116) aponta que a definição de “pacto
autobiográfico” é “[...] un hallazgo, y que Lejeune ha instituído como característica irrenunciable, no
deja de constituir una mera formalidad asociada a cualquier acto de la vida, y de ningún modo
exclusiva de estos escritos, en los que lector oficia como una especie de notario de la realidad.”
9
As relações entre autor (A), personagem (P) e narrador (N) na dinâmica narrativa apresentariam as
seguintes tipologias, a partir das relações de identidade:
“- A = P, P = N, N = A
→ autobiografia
- A
≠ P, P ≠ N, N = A → biografia
- A
≠ P, P = N, N ≠ A → ficção homodiegética
- A = P, P
≠ N, N ≠ A → autobiografia heterodiegética
- A
≠ P, P ≠ N, N ≠ A → ficção heterodiegética.” (GENETTE apud BARROS, 2006, p. 55)
A técnica narrativa ficcional na qual se fundem as identidades do narrador e do personagem em um
discurso em primeira pessoa e com claro aspecto novelesco, conhecida como autodiegética ou
homodiegética, tem na literatura brasileira alguns exemplos notáveis como “Memórias Póstumas de
Brás Cubas” (1881) e “Dom Casmurro” (1899), de Machado de Assis, e “O Ateneu” (1888), de Raul
Pompéia, entre outros.
10
Maciel (2013) afirma a expressividade do gênero memorialístico elencando Memórias (Vis-conde
de Taunay); Um homem sem profissão (Oswald de Andrade); Memórias do cárcere (Graciliano
Ramos); Meus verdes anos (José Lins do Rego); Solo de clarineta (Érico Veríssimo); Navegação de
cabotagem (Jorge Amado) e Quase memória: quase-romance (Carlos Heitor Cony), de modo a
demonstrar que tais “[...] narrativas têm em comum tanto um autor renomado de extensa produção
literária quanto as marcas da escrita em forma de memórias: longa cronologia de enredo, caráter
auto-promocional, narrador autodiegético, aparente sinceridade e capacidade de apreensão de um
entorno histórico.” (p. 552)
11
Essa obra introduz temas que serão revisitados constantemente nos textos autobiográficos de
autores posteriores: “[...] a vida escolar, sua relação e também a de seus familiares com a política,
seu trabalho como jornalista, a vida acadêmica, a concepção literária, o processo de escrita e
publicação de seus livros, os primeiros contatos com a leitura (Balzac, Alexandre Dumas,
Chateaubriand, Victor Hugo, etc), as histórias retratando a vida de homens importantes, entre outros.”
(BARROS, 2006, p. 42)
Wilton Carlos Lima da Silva
91
Compartilhe com seus amigos: |