São Paulo, Unesp, v. 11, n.1, p. 71-95, janeiro-junho, 2015
ISSN – 1808–1967
Os memoriais acadêmicos podem apresentar, em distintos níveis, tanto a dimensão
do discurso institucional e burocrático como o da narrativa pessoal e memorialística, de
maneira que o ethos discursivo oscile, conforme as opções do autor-narrador, entre a
abordagem objetivada de natureza cartesiana ou o enfoque subjetivante da perspectiva
hermenêutica.
Ethos utilizado aqui, de forma ampla, como o define a Análise do Discurso, ou seja,
enquanto comportamento verbal e não-verbal dos envolvidos em um processo de interação
social e que se traduzem como modos de enunciação (maneiras de dizer e de se
apresentar) com base em indícios de tom, caráter e corporalidade. (FAIRCLOUGH, 2001;
AMOUSSY, 2005; MAINGUENEAU, 2008)
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Assim, o ethos se projeta valendo-se de toda troca verbal, tanto oral como escrita, e
na qual a manifestação discursiva possui uma especificidade que desenha uma imagem de
si, que será (ou não) incorporada pelo auditório, ou seja, o possível público-leitor.
Generalizando, poderíamos afirmar que, em memoriais de áreas das Ciências
Exatas e Biológicas, ou nos mais antigos das Ciências Humanas, o referencial cartesiano e
a ambição de objetividade tendem a favorecer o surgimento de narrativas mais próximas de
uma estrutura esquemática, como um espelho do Currículo Lattes, no qual, ao longo das
páginas, se listam em ordem temática e cronológica os dados pessoais e as realizações do
autor-narrador no interior do campo profissional.
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Essa forma de narrativa, que se converte em uma enumeração, ao mesmo tempo
que não se mistura com a sua vida, apresenta a trajetória pessoal como um conjunto de
sucessos profissionais contínuos e cumulativos, com os vícios da linearidade, da
unidimensionalidade e do teleobjetismo.
O autor-narrador utiliza-se não de seu próprio discurso para apresentar-se, mas de
uma enumeração institucionalizada que legitima sua trajetória profissional e acadêmica – eu
não falo de mim, meus títulos falam por mim.
A enumeração se insere em um esforço de reafirmação de seu ethos e dos
referenciais lógico-formais de sua formação e suas práticas, por meio de analogias, do
descarte de detalhes e do reforço de uma visão cumulativa da qualidade intelectual e que,
em última análise, são tributárias do projeto da junção do realismo baconiano e do
racionalismo cartesiano que advoga a clara secessão entre sujeito e objeto, subjetividade e
conhecimento.
Em tempos sombrios nos quais a nulidade acadêmica, que busca afirmar-se como
mero diletantismo intelectual, e o produtivismo mais rasteiro, que ambiciona traduzir uma
carreira enquanto simples quantificação, travam disputa no interior de diferentes áreas e
campos da produção acadêmica, os modelos narrativos que se afastam do exclusivo
Wilton Carlos Lima da Silva
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