4 – O mito de Abel e Caim e o surgimento da cidade bíblica
Ruben George Oliven
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– O MITO DE ABEL E CAI
O MITO DE ABEL E CAI
O MITO DE ABEL E CAI
O MITO DE ABEL E CAIM E O SURGIMENTO DA
M E O SURGIMENTO DA
M E O SURGIMENTO DA
M E O SURGIMENTO DA
CIDADE BÍBLICA
CIDADE BÍBLICA
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Coabitou o homem com Eva, sua mulher. Esta concebeu e deu à luz a
Caim; então disse: Adquiri um varão com o auxílio do Senhor.
Depois deu à luz a Abel, seu irmão. Abel foi pastor de ovelhas e
Caim, lavrador.
Aconteceu que no fim de uns tempos trouxe Caim do fruto da terra
uma oferta ao Senhor.
Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu rebanho, e da gordura
deste. Agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta; ao passo que de
Caim e de sua oferta não se agradou. Irou-se, pois, sobremaneira
Caim, e descaiu-lhe o semblante.
Então lhe disse o Senhor: Por que andas irado? E por que descaiu o
teu semblante?
Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se todavia,
procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra
ti, mas a ti cumpre dominá-lo.
Disse Caim a Abel, seu irmão: Vamos ao campo. Estando eles no
campo, sucedeu que se levantou Caim contra Abel, seu irmão e o
matou.
Disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu:
Não sei: acaso sou eu tutor de meu irmão?
E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da
terra a mim.
És agora, pois, maldito por sobre a terra cuja boca se abriu para
receber de tuas mãos o sangue de teu irmão.
Quando lavrares o solo não te dará ele a sua força; serás fugitivo
errante pela terra.
Então disse Caim ao Senhor: É tamanho o meu castigo, que já não
posso suportá-lo.
Eis que hoje me lanças da face da terra, e de tua presença hei de
esconder-me; serei fugitivo e errante pela terra: quem comigo se
encontrar me matará.
O Senhor, porém, lhe disse: Assim qualquer que matar a Caim será
vingado sete vezes. E pôs o Senhor um sinal em Caim para que o não
ferisse de morte quem quer que o encontrasse.
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Retirou-se Caim da presença do Senhor e habitou na terra de Node,
ao oriente do Éden.
E coabitou Caim com sua mulher; ela concebeu e deu à luz a Enoque.
Caim edificou uma cidade e lhe chamou Enoque, o nome de seu
filho.
a
4.1 - O aspecto histórico-social
Ao nível histórico-social, uma primeira análise poderia levar-nos
a explicar o mito de Caim e Abel como um registro dos conflitos da
antiga Palestina, entre pastores nômades e agricultores.
Entretanto, isto não explicaria porque Caim não foi um pastor
nômade e portanto propenso a roubar e assassinar o agricultor
pacífico — mas um agricultor, enquanto Abel era o pastor.
Outra explicação tenderia a interpretar o mito historicamente do
seguinte modo: pastores famintos irrompem numa área de agricultura
estável durante uma seca e são aceitos como hóspedes pagadores de
tributos. Posteriormente, eles exigem uma participação no governo.
Sacrifícios simultâneos à deidade estatal são então oferecidos por
ambas as partes. A oferenda do chefe dos pastores é preferida; com o
que o chefe dos agricultores, auxiliado por seus parentes maternos o
assassina. Como consequência, os agricultores são expulsos e
eventualmente fundam uma cidade-estado noutro lugar.
Esta situação política tem sido frequente na África Oriental
durante séculos: pastores intrusos, que primeiro aparecem como
suplicantes famintos, adquirem ascendência política, depois de terem
despertado grave antagonismo por deixarem seus animais pisotearem
as colheitas.
Outra explicação considera que o sinal colocado em Caim
provavelmente era o sinal totêmico de seu clã, e que de fato todo o
a
GÊNESIS 4 : 1-17. In: BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo, Paulinas, 1969. p.
27-8.
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episódio encerra uma contenda tribal primitiva pela hegemonia nas
mais remotas eras da história do mundo.
4.2 - A análise do mito
Na cosmogonia bíblica, o surgimento da inteligência humana
está diretamente associado à noção do bem e do mal, à prática do
pecado e à noção de responsabilidade.
O paraíso representa um mundo no qual os homens têm todas
suas necessidades atendidas e no qual inexistem conflitos. Homem e
natureza vivem em perfeita harmonia.
Apenas uma proibição e consequente tentação destoa do quadro
geral: a árvore do bem e do mal. Toda dádiva do ambiente
paradisíaco está condicionada a não experimentar da árvore do bem e
do mal. Esta proibição, entretanto, não exclui a possibilidade de
infringi-la. Ao contrário de outras mitologias, não há a ideia da
predestinação. Enquanto na mitologia grega, Édipo está predestinado
a matar seu pai e juntar-se com sua mãe (sendo todas suas tentativas
de impedir a profecia do oráculo, fracassadas), na mitologia bíblica
existe livre arbítrio. Há uma proibição, mas é o Homem que decidirá
acatá-la ou não.
A infração da proibição simboliza o começo da história humana.
O Homem passa a ser conhecedor do bem e do mal. Sente vergonha
(de estar despido) e aprende que sua ousadia em desafiar a autoridade
divina será punida. À transgressão da norma corresponde a vergonha
e o castigo.
Este é constituído pela expulsão do Éden e pelas consequentes
dificuldades decorrentes da ruptura entre o Homem e a natureza:
dores do parto, ganhar o pão de cada dia com o suor da face.
Ao nível de transgressão e castigo, a punição recebida por Adão
e Eva, embora angustiante, oferece a vantagem de expiar uma
eventual culpa. A expiação da culpa é um dos elementos-chaves de
todo castigo. Com o castigo o infringido (Deus, a sociedade, o
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prejudicado pela infração) pune o infrator, ao passo que este paga ao
infringido por seu ato.
Entretanto, com Caim verifica-se uma situação sui generis. O
castigo que recebe é muito mais vago que o de seus pais. Estes
estavam atingidos pelo sentimento de vergonha; Caim é atingido pelo
sentimento de culpa.
Deus o responsabiliza pelo fratricídio. Se ao Homem é dada a
possibilidade
de
escolher,
esta
vem
acompanhada
da
responsabilidade que cada escolha acarreta.
Adão e Eva escolhem comer do fruto proibido e têm de arcar
com as consequências que o conhecimento do bem e do mal trazem.
Caim escolhe matar seu irmão e tem de responder por seu ato,
mesmo que a princípio não o queira ("Acaso sou eu tutor de meu
irmão?").
Adão e Eva desconheciam a noção do bem e do mal, quando
comeram do fruto proibido, não podendo portanto sentir-se culpados;
Caim, entretanto, nasceu num mundo onde esta noção já existia.
O castigo de Caim é carregar eternamente a culpa de seu ato.
Quando Deus lhe comunica que é maldito na terra e que esta não
mais lhe dará frutos, sendo, portanto, fugitivo e errante, Caim
exclama: "É tamanho o meu castigo que já não posso suportá-lo". A
punição que Deus lhe impôs é terrível justamente por dois motivos:
1) não permitir a expiação do crime; 2) (por conseguinte) impedir sua
reintegração na sociedade (será fugitivo e errante).
E, diante da argumentação de Caim de que será morto por quem
o encontrar, Deus reforça o castigo: coloca-lhe um sinal (que o
diferencia dos outros homens, impedindo-o de esquecer ou ocultar
seu crime) e determinando que quem o matar (ser assassinado seria
uma forma de expiar o assassinato por ele cometido) será vingado
sete vezes.
É neste clima que vem a surgir a primeira cidade bíblica. Caim
depois da sentença a que foi condenado edifica uma cidade à qual dá
o nome de seu filho Enoque.
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A construção de uma cidade com o nome de seu filho pode ser
interpretada com um duplo sentido reparador do crime: 1) a
construção de algo para compensar a destruição de uma vida; 2) fazer
renascer a Abel nesta construção, dando-lhe o nome de seu filho.
Neste sentido, o filho representa o irmão mais moço que assassinou e
ao qual restaura a vida simbolicamente.
Também poder-se-ia ver no ato de Caim um modo de amenizar a
maldição sobre ele lançada: já que não pode mais ser lavrador como
antes, estabelece-se em algo no qual a terra não é o elemento central
e no qual se encontra ao abrigo de possíveis ataques.
Na mitologia bíblica, a primeira cidade nasce, portanto, como
decorrência de um crime, mais especificamente de um fratricídio, e
possui um sentido reparador.
O assassinato de Abel pode ser interpretado não somente como
um fratricídio, mas também, indiretamente, como um parricídio.
Rejeitado pelo pai (simbolizado em Deus), que não se agradou de sua
oferta, Caim resolve matá-lo. Na impossibilidade de atingi-lo
diretamente, mata-o de modo simbólico, destruindo seu filho Abel
pelo qual fora preterido.
É interessante ressaltar a raiz etimológica do nome Enoque. Em
hebraico a raiz triletral da qual é composto o nome é a mesma que
corresponde aos verbos (e substantivos que deles derivam) inaugurar
e educar. Seria possível, levando o raciocínio mais além, estabelecer
várias suposições com base nesta semelhança etimológica,
principalmente se considerarmos que em hebraico a parte fixa de uma
palavra é composta por sua raiz (geralmente formada por três
consoantes) em torno da qual é flexionada com vogais e consoantes
complementares para formar substantivos, adjetivos, verbos etc.
Ao nível do mito podemos ainda estabelecer outras suposições
ou hipóteses. O livro de Gênesis fala de um outro Enoque, filho de
Jerede, cuja ascendência provém de Sete, o terceiro filho de Adão.
Este segundo Enoque foi pai de Matusalém, o homem que na Bíblia
teve a vida mais longa (969 anos). Sobre este segundo Enoque diz a
Bíblia:
Todos os dias de Enoque foram trezentos e sessenta e cinco anos.
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Andou Enoque com Deus, e já não era, porque Deus o tomou para
si.
b
O relato bíblico "Andou Enoque com Deus, e já não era, porque
Deus o tomou para si" era tradicionalmente interpretado com o
sentido de que não morrera mas fora transportado em vida para o céu
por sua virtude. Muitos livros apocalípticos focalizam sua morte; os
primeiros cristãos utilizavam-se do ponto de vista aceito sobre
Enoque para explicar a imortalidade de Jesus. Tal argumento
provocou reação entre os rabinos, alguns dos quais chegaram a negar
a virtude de Enoque. Somente após os cristãos se separarem
completamente dos judeus foi que Enoque recuperou a popularidade
na doutrina judaica; foi então identificado ao anjo Metraton, e surgiu
toda uma literatura mística em torno de sua personalidade. Alguns
críticos modernos sustentam que os 365 anos de Enoque
correspondem aos 365 dias do calendário babilônico e que a história
de Enoque era, originalmente, um mito solar da Babilônia.
Bibliografia Consultada
1. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo, Paulinas, 1969.
2. ENCICLOPÉDIA Judaica. Rio de Janeiro, Tradição, 1967.
3. FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Rio de Janeiro, Delta, s. d. Escrito em
1913.
4. FROMM, Erich. Análise do Homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1963.
5. — . O Espírito da Liberdade. Rio de Janeiro, Zahar, 1967.
6. GAVES, Robert & PATAI, Raphael. Hebrew myths: the book of genesis.
New York, McGraw-Hill, 1966.
7. SCHOLEM, Gershom G. Major trends in jewish mysticism. New York,
Schocken, 1954.
b
GÊNESIS 5: 23-4. In: BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo, Paulinas, 1969.
p.28
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8. SIMS, Albert E. & DENT, George. Who's who in the Bible. New York,
Philosophical Library, 1960.
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