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O SÉSAMO (Miguel Torga)
- Abre-te, Sésamo!gritava, o Raul, no meio do silêncio pasmado da assistência.
A fiada estava apinhada naquela noite. Mulheres, homens e crianças. As mulheres a fiar, a dobar ou a fazer meia, os
homens a fumar e a conversar, e a canalhada a dormitar ou nas diabruras do costume. Mas chegou a hora do Raul e, como sempre,
todos arrebitaram a orelha às histórias do seu grande livro.
Em urros, ao lado da instrução da escola e da igreja, a primeira dada a palmatoadas pelo mestre e a segunda a bofetões
pelo prior, havia a do Raul, gratuita e pacífica, ministrada numa voz quente e úmida, que ao sair da boca lhe deixava cantarinhas no
bigode.
-Abre-te, Sésamo! E o antro, com seu deslumbrante recheio, escancarou-se em sedutor convite ...
As crianças arregalavam os olhos de espanto. Os homens estavam indecisos entre acreditar e sorrir. As mulheres sentiam todas
o que a Lamega exprimiu num comentário:
-
O mundo tem coisas!...
Urros, em plena montanha, é uma terra de ovelhas. Ao romper de alva, ainda o dia vem longe, cada corte parece um saco sem
fundo donde vão saindo movediços novelos de lã. Quem olha as suas ruelas a essa hora, vê apenas um tapete fofo, ondulante, pardo
do lusco-fusco, a cobrir os lajedos. Depois o sol levanta-se e ilumina os montes. E todos eles mostram amorosamente nas encostas
os brancos e mansos rebanhos que tosam o panasco macio.
A riqueza da aldeia são as crias, o leite e aquelas nuvens merinas que se lavam, enxugam e cardam pelo dia fora, e nas fiadas
se acabam de ordenar. Numa loja de gado, ao quente bafo animal, junta-se o povo. Todos os moradores se cotizam para a luz de
carboneto ou de petróleo, e o serão começa.
É no inverno, nas grandes noites sem fim, que se goza na aldeia essa fraternidade. Há sempre novidades a discutir, namoricos
a tentar, apagadas fogueiras que é preciso reacender, e, sobretudo, há o Raul a descobrir cartapácios ninguém sabe como e a lê-los
com tal sentimento ou com tanta graça que ou faz chorar as pedras ou rebentar um morto de riso.
Daquela feita tratava-se de uma história bonita, que metia uma grande fortuna escondida na barriga de um monte. E o rapazio,
principalmente, abria a boca de deslumbramento. Todos guardavam gado na serra. E a todos ocorrera já que bem podia qualquer
penedo dos que pisavam estar prenhe de tesouros imensos. Mas que uma simples palavra os pudesse abrir isso é que não lembrara a
nenhum.
Da gente miúda que escutava, o mais pequeno era o Rodrigo, guicho, imaginativo, e por isso com fama de amalucado. No
meio de uma conversa séria, tinha saídas inesperadas e desconcertantes. Via estrelas de dia, que ninguém, por mais que fizesse,
conseguia enxergar, assobiava modas inteiramente desconhecidas, e desenhava no chão a cara de quem quer que fosse, o que era o
cúmulo dos assombros. Enfezado, sempre a pegar com os outros e a berrar como um infeliz quando depois lhe batiam, ouvia do seu
canto a leitura do Raul, maravilhado e a fazer projetos.
A fiada acabou tarde, com a assistência a cair de sono e a lutar para prender na imaginação aquela riqueza oriental enfragada.
E de manhãzinha., o Rodrigo, contra o costume, esgueirou-se sozinho para a serra da Forca atrás do rebanho. A história do Raul
tinha-lhe encandescido os miolos. Necessitava por isso de solidão e de apagar o incêndio sem testemunhas.
A serra da Forca é longe e é feia. Tem pasto, mas de que vale ?! O passado deixou ali tanto grito perdido, tanto cadáver
insepulto, tanta alma penada, que até mesmo as ladainhas da primavera se desviam e passam de largo. Mas é nos sítios assim
amaldiçoados que o povo, talvez para as preservar da coscuvilhice da razão, gosta de plantar lendas bonitas e aliciantes. E vá de
inventar que havia um tesouro escondido naquele ermo de maldição. Encontrá-lo é que era difícil. Enterrado entre penedias,
guardado por mil fantasmas, quem teria coragem de tentar a empresa? Ninguém. E o monte excomungado lá continuava azulado na
distância, agreste e assombrado.
O Rodrigo, porém, resolvera quebrar o encanto. E, às pedradas ao gado, ao nascer do sol tinha-o na frente. Ia simplesmente
rasgar o véu do mistério. Ia imitar o ladrão da história, com a diferença apenas de que uma vez dentro da caverna não se
esqueceria, como o outro, das palavras mágicas que lhe assegurariam a retirada.
Das riquezas que encontrasse não sabia ainda o que fazer. Nem sequer pensara nisso, porque os tesouros não eram o seu fim
verdadeiro. A sedução de tudo estava no prodígio em si, na fascinação do próprio ato assombroso que iria realizar. E o pequeno,
ágil e confiado, chegou ao alto, trepou à fraga maior e olhou em redor. A seus pés jaziam, caídos, os dois grossos pilares da forca,
onde segundo a tradição tinham exalado o último suspiro todos os justiçados da montanha. Sentar-se neles, tocar-lhes, era ainda,
dizia o povo, uma pessoa condenar-se a morrer de morte infeliz. Mas o Rodrigo trazia na vontade uma força que o preservava
dessas contingências. A fórmula encantatória brincava-lhe nos lábios finos e frescos de criança. E uma alegria imensa, pura, calma,
arredou para longe os espectros patibulares que tentavam perturbar a grandeza daquela hora. Abrir um monte! Dizer com ânimo e
certeza duas palavras e uma riqueza sem par oferecer-se passiva aos olhos da gente!
Para dilatar o gosto do poder que possuía (e talvez por um sentido íntimo de falência de que não tinha consciência inteira),
prolongava o tempo. Murmurava mentalmente a ordem de comando que aprendera no conto, e cerrava os dentes para que a boca o
não pudesse trair antes do momento escolhido.
O rebanho, esquecido do dono, pastava, alheio aos segredos da serra e do pastor. De quando em quando erguia-se do meio dele
um balido solitário, mas era um apelo sem resposta.
- Vai ser agora! Disse o Rodrigo, alto, a resolver-se. E com medo de a montanha fender precisamente pelo sítio onde estava,
que era no pino e no meio da fraga mais alta, desviou-se um pouco para a esquerda.
- É por ali, com certeza... Media os penedos, calculava o tamanho do buraco, via de antemão as entranhas da terra expostas à
luz do sol.
2
- E o gado? Lembrou-se então.
O gado pastava em baixo, num valeiro, em lugar por onde a imaginação mais ardente não podia fazer passar o prodígio.
Mesmo que rolassem pedras, ou caísse a carvalha agarrada a um barranco, não havia perigo.
- Só se houver muito azar! rematou, a serenar os cuidados.
E de alma tranquila, mas a tremer de emoção, solenemente, o pequeno feiticeiro ergueu a mão e gritou:
- Abre-te, Monte da Forca!
A sua imaginação ardente acreditava em todos os impossíveis. Tinha a certeza de que o Sésamo da história do Raul
existira realmente. Por isso ouviu com serenidade e confiança o eco da própria voz a regressar ferido das encostas.
Tudo requeria o seu tempo. Irreais, os horizontes perdiam-se ao longe, esfumados e frios. Vago, o rebanho, à volta, tosava
a erva mansamente. Impreciso, o gemido da ovelha queixosa não conseguia transpor o limiar da consciência do pastor.
Transfigurado, o Rodrigo estava entregue ao milagre. Ordenara-o e esperava por ele.
- Abre-te, Monte da Forca! Gritou de novo, já enfadado de uma espera que não cabia na ilusão. Qualquer coisa à volta
pareceu tremer, e o coração do pequeno saltou.
-Abre-te! reforçou, angustiado. Mas os horizontes começaram a tomar crueza e sentido, o rebanho avolumou-se, e o balido
da ovelha aflita subiu mais.
- Era mentira! E pelo seu rosto infantil e desiludido uma lágrima desceu desesperada.
- Era mentira... repetiu, debruçado sobre a alta fraga, a soluçar.
Tudo nele tinha a verdade da inocência. Lograra e fora logrado já, mas no jogo dos botões e a esconder da mãe um novelo
de linhas para a baraça do pião. Quando, porém, se tratava de coisas grandes como fábulas e mitos, a sua alma cândida não
concebia que pudesse haver mistificação. E a primeira vez que tirava a prova àquela confiança, que tentara ver de perto a miragem,
acordava cruamente traído!
Valeu-lhe a feliz condição de criança. Ele ainda a chorar e já a mão do esquecimento a enxugar-lhe os olhos. Breve como
vem, breve se vai o pranto dos dez anos. A ovelha chamava sempre. E o balido insistente acabou por acordá-lo para a realidade
simples da sua vida de pastor.
Ergueu-se, desceu da alta fraga enganadora, e, de ouvido atento, foi direito ao queixume.
- Olha, era a Rola... Um cordeiro acabara de nascer e a mãe lambia-o.
O outro estava ainda lá dentro, no mistério do ventre fechado.
Fonte: MIGUEL TORGA. Novos contos da montanha. 12.a ed. Coimbra, 2003, p. 99.
VOCABULÁRIO:
-
Sésamo
:(
s.m.) Mesmo que gergelim.1. Bot. Planta
herbácea da fam. das pedaliáceas (Sesamum
orientale), originária da Ásia e da África, que
produz sementes comestíveis das quais se extrai
óleo para uso culinário e industrial. 2. A semente,
pequena e achatada, dessa planta.
-
Fiada: (s.f.). 1. Uma porção de fios (fiada de lã;
fiada elétrica) 2. Uma série de coisas enfileiradas,
unidas por fios (fiada de bandeirolas; fiada de
peixes) 3. Carreira de pedras, tijolos etc., alinhados
na altura: O pedreiro acrescentou uma fiada de
tijolos ao muro.
-
Dobar: 1. Enrolar (fio de meada) em novelo;
enovelar 2. Mover (algo ou si mesmo) dando
voltas.; voltear; revolutear 3. Fig. Passar (tempo);
decorrer 4. Fig. Andar ocupado com tarefas.
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Canalhada: Pessoas ordinárias, comuns do povo.
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Cantarinhas: Bolhas de ar.
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Panasco: erva que serve de comida para o gado.
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Merinas: fofas, de aspecto gracioso.
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Cardar: desenredar, pentear a lã.
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Cartapácio: livro grande e antigo; carta longa.
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Rapazio: rapaziada.
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Guicho: Alegria ruidosa.
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Enfragar: levar até uma fraga (rocha).
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Penedo: pedra.
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Prenhe: grávida.
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Coscuvilhice: boato, fofoca.
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Aliciante: fascinante, que atrai.
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Penedias: pedras, penhascos.
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Agreste: selvagem, rústico.
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Prodígio: 1.acontecimento que é ou parece estar em
contradição com as leis da natureza ; 2.coisa ou fato
extraordinário; maravilha, milagre . 3 . pessoa que
apresenta alguma habilidade ou talento fora do comum.
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Patibular: que transmite a ideia de crime ou de remorso.
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Balido: som emitido por ovelha ou por cordeiro; balado.
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Fender: rachar.
-
Carvalha: Mesmo que carvalheira; carvalho.
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Lograr: 1. Obter, conseguir, alcançar. 2. Enganar,
ludibriar, iludir. 3. Desfrutar (algo) que se conquistou. 4.
Ter êxito.
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Baraça: Feixe ou cordão de fios para se atar qualquer
objeto, guita, cordel.
-
Mistificação: 1. Ação ou resultado de mistificar, de
enganar outrem; embuste; engodo; ludíbrio. 2. P.ext.
Crença um tanto fanática em alguém ou algo; misticismo.
-
Mitificar:
Transformar
em
mito.
2.
Conferir
exageradamente atributos elevados a (algo ou alguém), às
vezes para ocultar a verdadeira realidade.
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Queixume: reclamação, queixa.