V
CLAUDIUS HERMANN
. . . Ecstacy!
My guise as yours doth temperately keep time
And makes a healthful music: It is not madness.
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That I have utter'd.
Hamlet. Shakespeare
— E tu, Hermann! Chegou a tua vez. Um por um evocamos ao cemitério do passado um cadáver. Um por um
erguemo-lhe o sudário para amostrar-lhe uma nódoa de sangue. Fala que chegou tua vez.
— Claudius sonha algum soneto ao jeito do Petrarca, alguma auréola de pureza como a dos
espíritos puros da Messiada! disse entre uma fumaça e uma gargalhada Johann erguendo a cabeça
da mesa.
— Pois bem! quereis um historia? Eu pudera conta-las, como vos, loucuras de noites de
orgia; mas para que? Fora escárnio Faust ir lembrar a Mefistóteles as horas de perdição que lidou
com ele. Sabei-las... essas minhas nuvens do passado, leste-lo à farta o livro desbotado de minha
existência libertina. Se o não lembrásseis, a primeira mulher das ruas pudera conta-lo. Nessa
torrente negra que se chama a vida, e que corre para o passado enquanto nos caminhamos para o
futuro, também desfolhei muitas crenças, e lancei despidas as minhas roupas mais perfumadas,
para trajar a túnica da Saturnal! O passado é o que foi, é a flor que murchou, o sol que se apagou,
o cadáver que apodreceu. Lágrimas a ele? fora loucura! Que durma com suas lembranças negras!
revivam: acordem apenas os miosótis abertos naquele pântano! Sobreágüe naquele não-ser o
eflúvio de alguma lembrança pura!
— Bravo! Bravíssimo! Claudius, estas completamente bêbedo! bofé que estas romântico!
— Silêncio, Bertram! certo que esta não é uma lenda para inscrever-se após das vossas:
uma dessas coisas que se contêm com os cotovelos na toalha vermelha, e os lábios borrifados de
vinho e saciados de beijos... Mas que importa ?
Vos todos, que amais o jogo, que vistes um dia correr naquele abismo uma onda de ouro e
redemoinhar-lhe no fundo, como um mar de esperanças que se embate na ressaca do acaso, sabeis
melhor que vertigem nos tonteia então... ideai-la melhor a loucura que nos delira naqueles jogos
de milhares de homens, onde fortuna, aspirações, a vida mesma vão-se na rapidez de uma corrida,
onde todo esse complexo de misérias e desejos, de crimes e virtudes que se chama a existência se
joga numa parelha de cavalos!
Apostei como homem a quem não doera empobrecer: o luxo também sacia, e essa uma
saciedade terrível! para ela nada basta... nem as danças do Oriente, nem as lupercais romanas,
nem os incêndios de uma cidade inteira lhe alimentariam a seiva de morte, essa vitalidade do
veneno de que fala Byron. Meu lance no turf foi minha fortuna inteira. Eu era rico, muito rico
então: em Londres ninguém ostentava mais dispendiosas devassidões: nenhum nababo numa
noite esperdiçava somas como eu. O suor de três gerações derramava-o eu no leito das perdidas e
no chão das minhas orgias.
No instante em que as corridas iam começar, em que todos sentiam-se febris de
impaciência, um murmúrio correu pelas multidões, um sorriso... e depois eram as frontes que se
expandiam e depois uma mulher passou a cavalo.
Víssei-la como eu, no cavalo negro, com as roupas de veludo, as faces vivas, o olhar
ardente entre o desdém dos cílios, transluzindo a rainha em todo aquele ademã soberbo: víssei-la
bela na sua beleza plástica e harmônica, linda nas suas cores puras e acetinadas, nos cabelos
negros, e a tez branca da fronte, o oval das faces coradas, o fogo de nácar dos lábios finos, o
esmero do colo ressaltando nas roupas de amazona: víssei-la assim e, à fé, senhores, que não
havíeis rir de escárnio como rides agora!
— Romantismo! deves estar muito ébrio, Claudius, para que nos teus lábios secos de
Lovelace e na tua insensibilidade de D. Juan venha a poesia ainda passar-te um beijo!
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— Ride, sim! misérrimos! que não compreendeis o que porventura vai de incêndio por
aqueles lábios de Lovelace e como arqueja o amor sob as roupas gotejantes de chuvas de D. Juan
—o libertino! Insano, que nunca sonhastes Lovelace sem sua máscara talvez chorando Clarisse
Harlowe, pobre anjo, cujas asas brancas ele ia desbotar maldizendo essa fatalidade que fez do
amor uma infâmia e um crime. Mil vezes insanos que nunca sonhastes o Espanhol acordando no
lupanar, passando a mão pela fronte e rugindo de remorso e saudade ao lembrar tantas visões
alvas do passado!
— Bravo! bravo!
— Poesia! poesia! murmurou Bertram.
— Poesia! por que pronunciar-lho à virgem casta o nome santo como um mistério, no lodo
escuro da taverna? Por que lembra-la a estrela do amor a luz do lampião da crápula? Poesia!
sabeis o que é a poesia?
— Meio cento de palavras sonoras e vãs que um pugilo de homens pálidos entende, uma
escada de sons e harmonias que aquelas almas loucas parecem idéias e lhes despertam ilusões
como a lua as sombras... Isto no que se chama os poetas. Agora, no ideal, na mulher, o ressaibo
do último romance, o delírio e a paixão da última heroína de novela e o presente incerto e vago
de um gozo místico, pelo qual a virgem morre de volúpia, sem sabe-lo por que...
— Silêncio, Bertram! teu cérebro queimaram-to os vinhos, como a lava de um vulcão as
relvas e flores da campina. Silêncio! és como essas plantas que nascem e mergulham no mar
morto: cobre-as uma cristalização calcária, enfezam-se e mirram. A poesia, eu to direi também
por minha vez, é o vôo das aves da manhã no banho morno das nuvens vermelhas da madrugada,
é o cervo que se role no orvalho da montanha relvosa, que se esquece da morte de amanhã, da
agonia de ontem em seu leito de flores!
— Basta, Claudius: que isso que aí dizes ninguém o entende: são palavras, palavras e
palavras, como o disse Hamlet; e tudo isso é inanido e vazio como uma caveira seca, mentiroso
como os vapores infectos da terra que o sol no crepúsculo irisa de mil cores, e que se chamam as
nuvens, ou essa fada zombadora e nevoenta que se chama a poesia!
— A história! a historia! Claudius, não vês que essa discussão nos fez bocejar de tédio?
— Pois bem, contarei o resto da história. No fim desse dia eu tinha dobrado minha fortuna.
No dia seguinte eu a vi: era no teatro. Não sei o que representaram, não sei o que ouvi, nem
o que vi; sei só que lá estava uma mulher, bela como tudo quanto passa mais puro à concepção do
estatuário. Essa mulher era a duquesa Eleonora... No outro dia vi-a num baile... Depois... Fora
longo dizer-vos: seis meses! concebes? seis meses de agonia e desejo anelante, seis meses de
amor com a sede da fera! seis meses! como foram longos!
Um dia achei que era demais. Todo esse tempo havia passado em contemplação, em vê-la,
ama-la e sonhá-la: apertei minhas mãos jurando que isso não iria além, que era muito esperar em
vão e que se ela viria, como Gulnare aos pés do Corsário, a ele cabia ir ter com ela.
Uma noite tudo dormia no palácio do duque. A duquesa, cansada do baile, adormecia num
diva. A lâmpada de alabastro estremecia-lhe sua luz dourada na testa pálida. Parecia uma fade
que dormia ao luar...
O reposteiro do quarto agitou-se: um homem aí estava parado, absorto. Tinha a cabeça tão
quente e febril e ele a repousava no portal.
A fraqueza era covarde: e demais, esse homem comprara uma chave e uma hora a infâmia
venal de um criado, esse homem jurava que nessa noite gozaria aquela mulher: fosse embora
veneno, ele beberia o mel daquela flor, o licor de escarlate daquela taça. Quanto a esses prejuízos
de honra e adultério, não riais deles — não que ele ria disso. Amava e queria: a sua vontade era
como a folha de um punhal — ferir ou estalar.
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Na mesa havia um copo e um frasco de vinho, encheu o copo: era vinho espanhol...
Chegou-se a ela, ergueu-a com suas roupas de veludo desatadas, seus cabelos a meio soltos ainda
entremeados de pedraria e flores, seus seios meio-nus, onde os diamantes brilhavam como gotas
de orvalho, ergueu-a nos braços, deu-lhe um beijo. Ao calor daquele beijo, seminua, ela acordou:
entre os vagos sonhos se lhe perdia uma ilusão talvez; murmurou “amor!” e com olhos
entreabertos deixou cair a cabeça e adormeceu de novo.
O homem tirou do seio um frasquinho de esmeralda.
Levou-o aos lábios entreabertos dela e verteu-lhe algumas gotas que ela absorveu sem
senti-las. Deitou-a e esperou. Daí a instantes o sono dela era profundíssimo... A bebida era um
narcótico onde se misturaram algumas gotas daqueles licores excitantes que acordam a febre nas
faces e o desejo voluptuoso no seio.
O homem estava de joelhos, o seu peito tremia e ele estava pálido como após de uma longa
noite sensual. Tudo parecia vacilar-lhe em torno... Ela estava nua: nem veludo, nem véu leve a
encobria. O homem ergueu-se, afastou o cortinado.
A lâmpada brilhou com mais força e apagou-se...
O homem era Claudius Hermann.
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Quando me levantei, embucei-me na capa e sai pelas ruas. Queria ir ter a meu palácio, mas
estava tonto como um ébrio. Titubeava e o chão era lúbrico como para quem desmaia. Uma idéia
contudo me perseguia. Depois daquela mulher nada houvera mais para mim. Quem uma vez
bebeu o suco das uvas purpurinas do paraíso, mais nunca deve inebriar-se do néctar da terra...
Quando o mel se esgotasse, o que restava a não ser o suicídio?
Uma semana se passou assim: todas as noites eu bebia nos lábios à dormida um século de
gozo. Um mês, o mês em que delirantes iam os bailes do entrudo, em que mais cheia de febre ela
adormecia quente, com as faces em fogo...
Uma noite — era depois de um baile — eu a esperei na alcova, escondido atrás do seu leito.
No copo cheio d'água que estava junto a sua cabeceira derramara as últimas gotas do filtro,
quando entrou ela com o Duque.
Era ele um belo moço! Antes de deixa-la passou-lhe as duas mãos pelas fontes e deu-lhe
um beijo. Embevecido daquele beijo, o anjo pendeu a cabeça no ombro dele, e enlaçou-o com
seus braços nus, reluzentes das pulseiras de pedraria. O duque teve sede, pegou no copo da
duquesa, bebeu algumas gotas; ela tomou-lhe o copo, bebeu o resto. Eu os vi assim: aquele
esposo ainda tão moço, aquela mulher — ah! e tão bela!... de tez ainda virgem — e apertei o
punhal...
— Viras hoje, Maffio? disse ela.
— Sim, minh'alma.
Um beijo sussurrou, e afogou as duas almas. E eu na sombra sorri, porque sabia que ele não
havia de vir.
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Ele saiu, ela começou a despir-se. Eu lhas vi uma por uma caírem as roupas brilhantes, as
flores e as jóias, desatarem-se-lhe as tranças luzidias e negras e depois aparecia no véu branco do
roupão transparente, como as estátuas de ninfas meio-nuas, com as formas desenhadas pela túnica
repassada da água do banho.
O que vi... foi o que sonhara e muito, o que vos todos, pobres insanos, idealizastes um dia
como a visão dos amores sobre o corpo da vendida! Eram os seios níveos e veiados de azul,
trêmulos de desejo, a cabeça perdida entre a chuva de cabelos negros, os lábios arquejantes, o
corpo todo palpitante: era a languidez do desalinho, quando o corpo da beleza mais se enche de
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beleza, e, como uma rosa que abre molhada de sereno, mais se expande, mais patenteia suas
cores.
O narcótico era fortíssimo: uma sofreguidão febril lhe abria os beiços: extenuada e
lânguida, caída no leito, com as pálpebras pálidas, os braços soltos e sem forca, parecia beijar
uma sombra.
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Ergui-a do leito, carreguei-a com suas roupas diáfanas, suas formas cetinosas, os cabelos
soltos úmidos ainda de perfume, seus seios ainda quentes…
Corri com ela pelos corredores desertos, passei pelo pátio — a última porta estava cerrada
— abri-a.
Na rua estava um carro de viagem: os cavalos nitriam e escumavam de impaciência. Entrei
com ela dentro do carro. Partimos.
Era tempo. Uma hora depois amanhecia.
Breve estivemos fora da cidade.
A madrugada aí vinha com seus vapores, seus rosais borrifados de orvalho, suas nuvens
aveludadas, e as águas salpicadas de ouro e vermelhidão. A natureza corava ao primeiro beijo do
sol, como branca donzela ao primeiro beijo do noivo: não como amante afanada de noite
voluptuosa como a pintou o paganismo, antes como virgem acordada do sono infantil, meio
ajoelhada ante Deus, que ora e murmura suas orações balsâmicas ao céu que se azula, à terra que
cintila, às águas que se douram. Essa madrugada baixava a terra como o bafo de Deus; e entre
aquela luz e aquele ar fresco a duquesa dormia, pálida como os sonos daquelas criaturas místicas
das iluminuras da Idade Media, bela como a Vênus dormida do Ticiano, e voluptuosa como uma
das amásias do Veroneso.
Beijei-a: eu sentia a vida que se me evaporava nos seus lábios. Ela sobressaltou-se,
entreabriu os olhos; mas o peso do sono ainda a acabrunhava, e as pálpebras descoradas se
fecharam...
A carruagem corria sempre.
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O sol estava a prumo no céu — era meio-dia: o calor abafava: pela fronte, pelas faces, pelo
colo da duquesa rolavam gotas de suor como aljôfares de um colar roto... Paramos numa
estalagem: lancei-lhe sobre a face um véu, tomei-a nos meus braços, e levei-a a um aposento.
Ela devia ser muito bela assim! os criados paravam nos corredores: era assombro de tanta
beleza, mais ainda que curiosidade indiscreta.
A dona da casa chegou-se a mim.
— Senhor, vossa esposa ou irmã, quem quer que ela seja, de certo precisara de uma criada
que a sirva...
— Deixai-me: ela dorme.
Foi essa a minha única resposta.
Deitei-a no leito, corri os cortinados, cerrei as janelas para que a luz lhe não turbasse o
sono. Não havia ali ninguém que nos visse, estávamos sós, o homem e seu anjo; e a criatura da
terra ajoelhou-se ao pé do leito da criatura do céu.
Não sei quanto tempo correu assim, não sei se dormia, mas sei que sonhava muito amor e
muita esperança, não sei se velava, mas eu a via sempre ali, eu lhe contemplava cada movimento
gracioso do dormir, eu estremecia a cada alento que lhe tremia os seios, e tudo me parecia um
sonho, um desses sonhos a que a alma se abandona como um cisne, que modorra, ao som das
águas... Não sei quanto tempo correu assim: sei só que o meu delíquio quebrou-se, a duquesa
estava sentada sobre o leito, com os braços nus afastava as ondas do cabelo solto que lhe cobria o
rosto e o colo.
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— É um sonho? murmurou. Onde estou eu? quem esse homem encostado em meu leito?
O homem não respondeu.
Ela desceu da cama: seu primeiro impulso foi o pudor: quis encobrir com as mãozinhas os
seios palpitantes de susto. Sentiu-se quase nua, exposta às vistas de um estranho, e tremia como
contam os poetas que tremera Diana ao ver-se exposta, no banho, nua às vistas de Acteon.
— Senhor, dizei-me por compaixão, se tudo isso não é uma ilusão... se não fora uma
infâmia! Nem quero pensa-lo. Maffio não deve tardar, não é assim? o meu Maffio! Tudo isso é
uma comédia… Mas que alcova é esta? Eu adormeci no meu palácio... como despertei numa sala
desconhecida? Dizei, tudo isso é um brinco de Maffio? quer se rir de mim... Mas, vede, eu tremo,
tenho medo.
O homem não respondia: tinha os olhos a fito naquela forma divina. — Seria a estátua da paixão na palidez,
no olhar imóvel, nos lábios sedentos, se o arfar do peito lhe não denunciasse a vida.
Ela ajoelhou-se: nem sei o que ela dizia. Não sei que palavras se evaporaram daqueles
lábios: eram perfumes, porque as rosas do céu só tem perfumes; eram harmonias, porque as
harpas do céu só tem harmonias; e o lábio da mulher bela é uma rosa divina e seu coração e uma
harpa do céu. Eu a escutava, mas não a entendia, sentia só que aquelas falas eram muito doces,
que aquela voz tinha um talismã irresistível para minh'alma, porque só nos meus sonhos de
infante que se ilude de amores, uma voz assim me passara. Os gemidos de duas virgens abraçadas
no céu, doiradas da luz da face de Deus, empalidecidas pelos beijos mais puros, pelo tremuloso
dos abraços mais palpitantes, não seriam tão suaves assim!
A moça chorava, soluçava: por fim ela ergueu-se.
Eu a vi correr a janela, ia abri-la... Eu corri a ela e tomei-a pelas mãos...
— Pois bem, disse ela, eu gritarei... se não for um deserto, se alguém passar por aqui...
talvez me acudam... Socor...
Eu tapei-lhe a boca com as mãos...
— Silêncio, senhora!
Ela lutava para livrar-se de minhas mãos: por fim sentiu-se enfraquecida. Eu soltei-a de
pena dela.
— Então, dizei-me onde estou... dizei-mo, ou eu chamarei por socorro...
— Não gritareis, senhora!
— Por compaixão então esclarecei-me nesta dúvida: por que tudo isso que eu vejo? Tudo o
que penso, o que adivinho é muito horrível!
— Escutai pois, disse-lhe eu. Havia uma mulher... era um anjo. Havia um homem que a
amava, como as águas amam a lua que as prateia, como as águias da montanha o sol que as fita,
que as enche de luz e de amor. Nem sei quem ele era: ergueu-se um dia de uma vida de febre,
esqueceu-a; e esqueceu o passado, diante de uns olhos transparentes de mulher, as manchas de
sua história, numa aurora de gozos, onde se lhe desenhava a sombra desse anjo... Escutai: não o
amaldiçoeis! Esse homem tinha muita infâmia no passado: profanara sua mocidade, prostituíra-a
como a borboleta de ouro a sua geração, lançando-a no lodo; frio, sem crenças, sem esperanças,
abafara uma por uma suas ilusões, como a infanticida seus filhos... Deus o tinha amaldiçoado
talvez! ou ele mesmo se amaldiçoara... Esquecera que era homem e tinha no seu peito harmonias
santas como as do poeta... Ele as esquecera e elas dormiam-lhe no mistério como os suspiros nas
cordas de uma guitarra abandonada. Esquecera que a natureza era bela e muito bela, que o leito
das flores da noite era recendente, que a lua era a lâmpada dos amores, as aragens do vale, os
perfumes do poeta no seu noivado com os anjos e que a aurora tinha eflúvios frescos... e com
suas nuvens virginais, suas folhas molhadas de orvalho, suas águas nevoentas tinha encantos que
só as almas puras entendem! Tudo isso enjeitou, esqueceu... para só o lembrar a furto e com
escárnio nas horas suarentas da devassidão... Ele era muito infame!
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— Mas tudo isso não me diz quem sois vos... nem porque estou aqui...
— Escutai: — O libertino amou pois o anjo, voltou o rosto ao passado, despiu-se dele como
de um manto impuro. Retemperou-se no fogo do sentimento, apurou-se na virgindade daquela
visão, porque ela era bela como uma virgem, e refletia essa luz virgem do espírito, nesse brilho
d'alma divina que alumia as formas que não são da terra, mas do céu. Ainda o tempo não eivara o
coração do insano de uma lepra sem cura, nem selo inextinguível lhe gravara na fronte —
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