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Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia
soluçar: em torno dela passavam as aves da noite.
Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério.
Contudo a criatura pálida não fora uma ilusão: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam
quebradas junto a uma cruz.
O frio da noite, aquele sono dormido à chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio
passava e repassava aquela brancura
de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio
se perdia num canto suavíssimo...
Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no sono da
saciedade me vinha aquela visão...
Uma noite, e após uma orgia, eu deixara dormida no leito dela a condessa Bárbara. Dei um
último olhar àquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos,
gemendo ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saí. Não sei se a noite era
límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças
tinham ficado
vazias na mesa: nos lábios daquela criatura eu bebera até a última gota o vinho do deleite...
Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios
brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto.
Abri-o: era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela,
naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta! ... e
aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida. . — Era o anjo do cemitério? Cerrei as
portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para
fora do caixão. Pesava como chumbo...
Sabeis a historia de Maria
Stuart degolada e o algoz, "do cadáver sem cabeça e o homem sem coração" como
a conta Brantôme? — Foi uma idéia singular a que eu tive. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela
era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo as despe a noiva. Era mesmo uma
estátua: tão branca era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O
gozo foi fervoroso — cevei em perdição aquela vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de
meu peito, à febre de meus lábios, à convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito abriu os
olhos empanados. Luz sombria alumiou-os como a de uma estrela entre névoa, apertou-me em seus braços, um
suspiro ondeou-lhe nos beiços azulados... Não era já a morte: era um desmaio. No aperto daquele abraço havia
contudo alguma coisa de horrível. O leito de lájea onde eu passara uma hora de embriaguez me resfriava. Pude a
custo soltar-me daquele aperto do peito dela... Nesse instante ela acordou…
Nunca ouvistes falar da catalepsia? É um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num
sepulcro; sonho gelado em que sentem-se os membros tolhidos, e as faces banhadas de lágrimas alheias sem poder
revelar a vida!
A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar desmaiara. Embucei-me
na capa e tomei-a nos
braços coberta com seu sudário como uma criança. Ao aproximar-me da porta topei num corpo;
abaixei-me, olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja que aí dormira de ébrio, esquecido de
fechar a porta .
Saí. Ao passar a praça encontrei uma patrulha.
— Que levas aí?
A noite era muito alta: talvez me cressem um ladrão.
— É minha mulher que vai desmaiada...
— Uma mulher!... Mas essa roupa branca e longa? Serás acaso roubador de cadáveres?
Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria.
— É uma defunta...
Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. — Era a vida ainda.
— Vede, disse eu.
O guarda chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram pelos da moça. Se eu sentisse o
estalar de um beijo... o punhal já estava nu em minhas mãos frias...
5
— Boa noite, moço: podes seguir, disse ele.
Caminhei. — Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo; e eu sentia que a moça ia
despertar. Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço.
Quando eu passei a porta ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de
medo...
Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos
meus companheiros que
voltavam da orgia. Reclamaram que abrisse.
Fechei a moça no meu quarto, e abri.
Meia hora depois eu os deixava na sala bebendo ainda. A turvação da embriaguez fez que
não notassem minha ausência.
Quando entrei no quarto da moça vi-a erguida. Ria de um rir convulso como a insânia, e
frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor o ouvi-la.
Dois dias e duas noites levou ela de febre assim... Não houve como sanar-lhe aquele delírio,
nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.
A noite saí; fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente em cera, e paguei-lhe
uma estátua dessa virgem.
Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto, e com as mãos cavei
aí um túmulo. Tomei-a então pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito muda e fria,
beijei-a e cobri-a adormecida do sono eterno com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu túmulo e
estendi meu leito sobre ele.
Um ano — noite a noite — dormi sobre as lajes que a cobriam. Um dia o estatuário me
trouxe a sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo...
— Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do
meu cortinado? Não te lembras que eu te respondi que era uma virgem que dormia?
— E quem era
essa mulher, Solfieri?
— Quem era? seu nome?
— Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho lhe queima assaz os
lábios? quem pergunta o nome da prostituta com quem dormia e que sentiu morrer a seus beijos,
quando nem há dele mister por escrever-lho na lousa?
Solfieri encheu uma taça e bebeu-a. Ia erguer-se da mesa quando um dos convivas tomou-o
pelo braço.
— Solfieri, não é um conto isso tudo?
— Pelo inferno que não! por meu pai que era conde e bandido, por minha mãe que era a
bela Messalina das ruas, pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com
meus pés na sua cova de terra, eu vô-lo juro — guardei-lhe como amuleto a capela de defunta.
Hei-la!
Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.
—Vede-la murcha e seca como o crânio dela!
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