A “questão bancária” na "guerra interna": um projeto para
"meia dúzia de homens"
Na véspera da aprovação do voto de graças no senado, o
ministro da Agricultura, Paula Sousa, apresentou na Câmara um
projeto referente à questão bancária oposto ao que apresentara
o ministro da fazenda, em abril, mas que ficou sem
encaminhamento por conta da oposição de seus próprios
correligionários, liderados por Tavares Bastos. O novo projeto
elevava a emissão do Banco do Brasil até 8.000:000$000 (oito mil
contos de réis) além do triplo do fundo disponível, e autorizava a
emissão de até 4.000:000$000 (quatro mil contos de réis) em
notas do tesouro dos valores de 1$000 (um mil réis), 2$000 (dois
mil réis), 5$000 (cinco mil réis) e 10$000 (dez mil réis).
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Esse projeto foi duramente combatido por liberais e
conservadores, na Câmara. E Paula Sousa admitiu a verdade da
insinuação do conservador Junqueira, de que atenderia
interesses particulares, de “meia dúzia de homens”, existentes
na praça de comércio
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, dizendo que se tratava de “interesses
muito legítimos”, de casas bancárias (entre as quais o banco
Inglês) em dificuldades, por terem sido atingidas pela
repercussão de uma crise que então acontecia na Europa, mas
que até aquele momento tinham tido uma atuação muito
regular.
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O governo precisaria, de qualquer modo, segundo o
ministro, fazer o redesconto de seus bilhetes, para “socorrer a
praça em apuros”. Objeto de discussão poderia existir apenas na
fonte da emissão, se o governo ou o banco, optando o ministro
por esta última opção, em virtude de que a existência de um
prazo para a sua conversibilidade a tornaria mais confiável.
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A oposição liberal, na voz de Franco de Almeida,
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se opõe
à emissão bancária, propondo que o governo redesconte os seus
bilhetes com emissão própria, preferível à do banco, segundo o
deputado, porque a garantia do banco, lembrada pelo ministro,
no fundo, seria o próprio governo.
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O deputado chega a enviar à
EIDE SANDRA AZEVEDO ABREU
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mesa da Câmara uma emenda, autorizando o tesouro a emitir
16.000:000$000 (dezesseis mil contos de réis) em notas para
resgatar os seus bilhetes existentes na praça e no banco do
Brasil.
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Enquanto na Câmara o ministro da Agricultura, apoiado
por uma atuação favorável de Tavares Bastos, defendia, em 13
de junho, os “interesses legítimos muito especiais”
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de
banqueiros particulares, que seriam favorecidos pelo projeto que
pôs em discussão, e que recebeu a oposição intransigente de
Franco de Almeida,
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no Jornal do Commercio de 13 de junho
também era muito atuante a oposição contra o projeto, que mais
tarde viria a ser apontado como tendo sido sugerido ao governo
por uma fração do próprio comércio
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(26 de junho), ou mesmo
"ditado" pelos “devedores do banco”. Em 15 de julho,
“Comerciantes” assinam um artigo com esta última
interpretação, monstrando-se indignados com o projeto Paula
Sousa:
Casos extraordinários estão sucedendo na nossa praça e nunca
vistos em país algum. São hoje em dia os devedores do banco
que lhe querem ditar a lei; forte desgraça! Vê-se por todas as
ruas e praças gritarem contra o Sr. Ministro da fazenda, e
também contra o Sr. de Jequitinhonha, e por quê? Por estes
inteligentes funcionários quererem fazer benefícios ao país, e não
se continuar a dar o dinheiro do estabelecimento a homens que
estão completamente perdidos.
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Quando o projeto ainda estava sendo debatido na Câmara,
em 13 de junho, alguém com o pseudônimo que está difícil de
ler no microfilme do jornal, mas parece ser B. G., publicou um
artigo intitulado “O povo e o governo”, em que afirma que a
proposta de Paula Sousa significava uma “iniqüidade que não
tem qualificação”, pois contemplava medidas propostas pela
praça do Comércio, e viria a favorecer bancos e banqueiros, e
“classes” já “privilegiadas”, ao mesmo tempo em que
OS “ABUTRES” NA TURBULÊNCIA DAS “ÁGUIAS”:...
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prejudicaria a “maioria do povo”, que sofreria com a
desvalorização das notas:
Eu e como eu centenas de milhares de brasileiros, a imensa
maioria da nação, tenho um rendimento certo e invariável, devido
ao meu trabalho. A quebra de todos os bancos, banqueiros, de
300 ou 400 comerciantes, de 100 ou 15000 lavradores não me
daria, como à imensa maioria do povo, o menor prejuízo; por que
[ilegível] obrigar a contribuir para que eles continuem a
enriquecer e gozar as delícias da vida, fazendo-nos pagar mais
caro tudo quanto precisamos comprar com os nossos
vencimentos fixos?
O autor finaliza o texto defendendo a emissão por parte do
governo, que implicaria uma distribuição mais eqüitativa do
prejuízo:
Se o governo precisa de fundos para continuar a guerra, emita
notas suas; será um empréstimo forçado, um imposto a que todo
o Brasileiro se sujeitará [ilegível] queixar-se porque será
distribuído com [?] e cada um contribuirá na razão das suas
despesas.
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No mesmo dia, “um pobre” argumenta de modo parecido:
O que não queremos é uma emissão para, à custa dos pobres, de
que fazemos parte, refazer a fortuna esbanjada dos perdulários
da praça, fortuna que, à custa da sociedade e sem trabalho
produtivo pelo país, já haviam adquirido por meio da agiotagem e
da usura.
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Um terceiro artigo prevê futura encampação, e a
“bancarrota geral”:
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Se o tesouro necessita de dinheiro, faça o governo uma emissão,
e não dê ao banco faculdade de emitir. Esta faculdade é o
prelúdio de uma futura encampação [?].
Dizem alguns: é preciso salvar a praça. Isto é um erro.
Em 1864 quis-se salvar a praça, e ficou ela em piores
circunstâncias; entretanto o banco passou do duplo ao triplo da
emissão.
O banco agora emitirá 10.000.000$ para salvar a praça, que ficará
mais endividada, em 1867 emitirá 20.000.000$000 para o mesmo
fim; em 1868 uns 30.000.000$000 e assim por diante, até a praça
arrebentar com o banco do Brasil, acarretando consigo a
bancarrota geral, a ruína do país e de todos.
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Havia um conflito entre acionistas e diretores do banco,
como sinaliza o artigo “Banco do Brasil”, do “Cosmopolita”, em
10 de junho de 1866. Propõe a mudança da diretoria, com a
aquisição de diretores “com bom senso e conhecedores da
praça”, para que o banco volte “ao seu antigo estado”. Na
exposição dos seus argumentos, o autor nos permite divisar
conflitos que opunham inclusive a presidência do banco aos
seus diretores:
A atual diretoria não preenche tais condições, isto não é
novidade para o público, porque está no conhecimento de todos.
Os acionistas gritam contra a diretoria, o comércio sensato
acompanha-os, e só os únicos que desejam sua conservação são
aqueles que andam embrulhados em grande papelório, e que nos
tem levado a este estado de coisas...
Outra diretoria que não fosse esta, quando o presidente não quis
assinar a ata e retirou-se, pediria imediatamente a sua demissão;
mas aquilo é rendoso, e não há nada que os faça deixar os
lugares, salvo se todos os acionistas se reunissem e os pusessem
fora do estabelecimento, mesmo assim haviam de se agarrar de
tal forma que com dificuldade sairiam.
(...)
De que servem reuniões, se nelas não se discute senão os
interesses, sofra quem sofrer, porém que a bolsa fique cheia!
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Finalmente, demita-se a diretoria, e veremos como as cenas
mudam!
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Os acionistas (representados nas páginas do Jornal do
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