A Bela Adormecida: da agressão sexual a mediocridade
Ao analisar as versões do conto A Bela Adormecida, percebe-se que a
personagem da princesa passa por inúmeras transformações afim de acompanhar as
mudanças sociais, principalmente com relação a posição das mulheres e dos
estereótipos.
Assim mudam-se os costumes, mudam-se as identidades dos homens e suas relações
sexuais. E o recurso à metamorfose nos contos maravilhosos contemporâneos são
exemplos das transformações vivenciadas por nossa sociedade atual. Isso não quer
dizer que nos contos de fadas tradicionais não havia metamorfose, pelo contrário, ela
era recorrente nessas histórias, porém não no sentido de proporcionar uma mudança
de sentido ou de perspectiva, como fazem as histórias contemporâneas. (THEODORO,
2012, p. 31)
Para iniciar a análise observaremos como cada história tem início. Em todas as
versões analisadas, o rei, pai da menina, aparece como responsável pela menina e
seu futuro. Este fato pode ser observado, pois é ele quem está encarregado de
convidar os sábios e as fadas para o batizado. A figura da mãe não é evidenciada na
história de Basile (1634), é citada nas demais versões, mas não chega a ganhar
destaque em nenhuma delas. Outro fato interessante é que nas versões de Basile
(1634) o nome da menina só é mencionado no meio da história, na de Perrault (1687),
a menina não tem nome, e nas demais versões é que seu nome passa a ter uma
importância.
Ao comparar o início das diferentes versões do conto, evidencia-se a relação
existente entre a realidade e o conto, uma vez que seus discursos refletem os
comportamentos adotados socialmente. O fatodo rei ser o responsável e o fato das
crianças não terem inicialmente nome demonstram um discurso de poder do homem e
o silenciamentoquanto a importância do papel da mulher na sociedade. Ruth B.
Bottigheimer (1987, p. 51 apud MARTINS, 2005, p. 17) afirma que “o discurso pode
ser visto como uma forma de dominação, em que o uso da fala é umindicador de
valores sociais e da distribuição do poder dentro da sociedade”, evidenciando o poder
masculino no silenciamento das mulheres.
A visão da inferioridade e da subordinação das mulheres mostra que existe uma
ideologia sexista e de despersonalização destas na religião e na sociedade. A ideologia
que veicula a inferioridade e subordinação das mulheres é reproduzida por meio de um
discurso androcêntrico, dentro do sistema patriarcal. (TOMITA, 2002, p. 60)
Outro aspecto a ser observado, são os atributos dados a princesa. Na primeira
versão não há referencias a beleza de Talia. Nas versões de Perrault (1687), dos
Grimm (1812) e Disney (1959), as fadas atribuem dons e beleza a princesa
evidenciando os padrões de estereótipos. Padrões esses reforçados nas
características atribuídas às fadas, sendo as boas belas e são convidadas para o
batizado enquanto que as más são velhas e feias ou são esquecidas ou não são
convidadas para o batismo.
A mulher enquanto objeto, fica nitidamente representada na versão de Basile
(1634), quando Taliaé estupra. RosemanyRuether (1993) explica que o estupro não
resulta de um desejosexual incontrolável, o que na verdade ele revela é o desprezo e
hostilidade contra asmulheres. A autora evidência que o estupro nunca acontece
isoladamente,normalmente, é seguido de violência e mutilação transformando a
mulher em objeto, sendo tratada como mercadoria.
Na versão do filme Malévola (2014), a princesa Aurora é estuprada, mas
assume a condição de mulher objeto quando é oferecida pelo pai como prêmio a
aquele que conseguir derrotar e matar Malévola.
Nas versões de Perrault (1687), Irmãos Grimm (1812) e Disney (1959) a
princesa apresenta-se como a boa moça a espera do príncipe encantado, uma forma
de “recompensa” por sua beleza, bondade e submissão.
A questão da opressão em relação à princesa aparece em todas as versões, o
que muda é a roupagem que cada um dos opressores assume, estabelecendo as
relações de poder e evidenciando o mal. Na versão Sol, Lua e Talia (1634), a esposa
do rei assume esse papel, ao se mostrar enciumada pela traição do marido, tentando
matar os filhos e a própria Talia sem demonstrar a menor compaixão em seus atos. Na
versão de Perrault (1687), é a mãe do príncipe que assume a responsabilidade pela
maldade por ciúmes do filho tenta matar a nora e os netos. Ambas as protagonistas
das maldades tem um fim trágico, a morte.
Nas versões dos Grimm (1812) e Disney (1959) não há referências ao destino
das fadas más. O que é evidenciado, assim como nas demais histórias é que a
princesa é salva pelo príncipe e que viveram felizes para sempre.
O filme Malévola (2014) é a versão que mais se difere dos demais. Ele aborda
a questão de que o mal em algumas situações pode ser justificado pelas interferências
dos fatos. Outro aspecto ressaltado nessa versão que, o bem e o mal assumem
significados diferentes de acordo com o ângulo que são vistos. O mesmo acontece
com o belo e o feio.O que o enredo mostra é que, Malévola só lança sua maldição
sobre a menina, pois foi traída pelo seu pai, o grande amor de sua vida. E essa foi a
forma encontrada por ela para fazer com que ele sofresse da mesma forma como ele
havia feito com ela. O que ela não contava é que viria a amar a princesa.
Os aspectos relacionados a feiura e a maldade também ganham outra
conotação, aqui a maldade não é representado pelo feio, muito pelo contrário Malévola
é dotada de uma beleza arrasadora. O mal também não é tão mal assim, e os
sentimentos de uma pessoa pode mudar, a ponto de Malévola se arrepender de ter
lançado a maldição na menina tentando reverter a situação. Outro aspecto que
demonstra o arrependimento é que após a concretização da profecia, Malévola se
desespera e manda buscar o príncipe para tentar reverter o mal que tinha cometido.
Apesar do príncipe beijar a princesa, ela não desperta o que revela que, nos dias
atuais, o amor entre um homem e uma mulher não são suficientes para quebrar uma
maldição. O que faz a princesa despertar e o beijo de Malévola, que demonstra um
amor maternal e incondicional por Aurora.
No final do filme, outra representação das mudanças sociais é a demonstração
da força feminina quando Malévola, apesar de ferida consegue derrotar o rei matando-
o e livrando-se da dominação.
Com todas as modificações observadas percebe-se que os contos não são
criados aleatoriamente, eles estão inseridos em um contexto histórico, que muda
constantemente, rearticulando a realidade e transformando a linguagem, com isso, a
literatura demonstra que as próprias mentalidades mudam não só com relação ao
comportamento moral, mas também, com relação às questões éticas, a ausência de
hierarquização e nos perfis tanto masculinos como femininos.
Compartilhe com seus amigos: |