“O pombalismo representou a primeira grande tentativa - que as
próprias circunstâncias graves haviam criado - de encarar de frente
os grandes problemas econômico-políticos do país...A nível
ideológico, tal absolutismo orientou-se à sua maneira, pelas vias do
‘despotismo esclarecido’, afirmando assim, sem subterfúgios, a
origem divina do poder real e a concentração total da soberania no
poder”.
49
Assim, através da especialização de funções do Estado burocrático, o governo pombalino
passou a controlar mais amplamente tudo o que, de uma maneira ou de outra, estava ao alcance do
poder do Estado. Enfatiza-se aqui uma ruptura concreta com a ideologia vigente até então, que se
pode considerar tradicional, enraizada pós-Restauração. Neste raciocínio, se permite pensar que na
verdade o Estado burocrático, consolidado sob Pombal, não pode ser colocado sob uma perspectiva
continuísta, pois se renovou ideologicamente, caracterizando-se mais firmemente como um período
que se inicia, com nuances próprias, do que ligado ao período que o precedeu. Na medida em que no
pombalismo o Estado manteve sólidas características no nível econômico, radicalizou-se em outros
níveis.
50
Pensa-se, neste caso, a ação administrativa colonial e a política externa adotada pelo Estado
47
FALCON, op. cit., p. 152.
48
Falcon reforça e explica em parte esta questão: “Na prática, portanto, o processo de debilitação do poder do Estado, com
suas inevitáveis sequelas, traduzidas sob a forma de inércia, ineficiência e aumento da corrupção no aparelho burocrático
abriu caminho aos descontentamentos e às pretensões daquelas camadas ou grupos da burguesia mais diretamente
prejudicados, ou mais dispostos a contestar o crescimento relativo da aristocracia. Desse modo, o poder do Estado tendia,
na prática, a tornar-se objeto de disputas, incessantes e renhidas, entre as diversas frações de classes a ele mais
diretamente ligadas, ou seja, o ‘próprio bloco no poder apresentava fissuras que o comprometiam e paralisavam, em
termos gerais”.
Op. cit., p. 372.
49
Op. cit., vol 1, p.7
50
FALCON, op. cit., p.225.
luso, que se traduziu em tratados bilaterais e jogos diplomáticos, no lugar do constante e crescente
estado de beligerância e territorialidade.
Atenta-se que no plano político a ação se revelou com posicionamentos radicais, marcando
cada vez mais o fortalecimento do Estado em seus aparelhos e em suas bases sociais. Isto não seria
possível sem a ruptura com o poder eclesiástico e com a ideologia desse poder.
51
O choque com o
poder jesuítico era inevitável, eliminando a autonomia da Inquisição, e abrindo para uma
metamorfose das mentalidades inseridas nesses conflitos, além de possibilitar o reformismo que
acabou por caracterizar o governo pombalino.
52
Neste sentido, os discursos do Estado pombalino
revelaram-se com uma relativa diversidade de perspectivas, “pois expressaram formas de pensamento
e níveis de consciência que se contrapunham à ideologia oficialmente defendida pelo aparelho
ideológico dominante - a Igreja - e seus aparelhos subsidiários”.
53
A Igreja passou, dessa forma, a
assumir várias atribuições dentro do Estado.
54
Caracterizaram-se, na prática, as disposições do governo que se instaurava, sob a coroa de D.
José I e sob a égide do Marquês de Pombal. Nessa medida, se reorganizou e se reforçou o aparelho de
Estado, visando não apenas definir funções internas, mas recuperar as rendas nacionais através da
eliminação dos canais burocráticos que impediam e/ou diminuíam a circulação comercial e a
arrecadação fiscal. A preocupação em fazer funcionar a máquina do governo em novas bases
organizacionais atingia diretamente o mantenimento das áreas coloniais.
E aqui aparece uma questão fundamental, que diz respeito à ação do poder do Estado luso
sobre territórios em disputa e áreas coloniais sob seu domínio. Questionou-se nesse momento a
eficácia desse poder, ameaçado de deslocamento, ao menos em potencial, dessas áreas periféricas. O
Estado perdia progressivamente a sua presença nos territórios periféricos, mais precisamente no
ultramar. Isto era reflexo de certa incapacidade de ação eficaz do aparelho de Estado produzindo
resultados altamente negativos, sob vários aspectos. A ameaça dos países rivais, que aumentavam sua
audácia e ambição, como o caso dos espanhóis na região oriental platina, preocupava muito o Estado
português.
55
51
Idem, p.225.
52
Ibidem, p. 226.
53
Ibidem, p. 227.
54
Cf. Althusser: “... no período histórico pré-capitalista [...] é evidente que havia um ‘aparelho ideológico de Estado’ dominante, a
Igreja, que reunia não só as funções religiosas, mas também as escolares e uma boa parcela das funções de informação e de ‘cultura’.
Não foi por acaso que toda a luta ideológica do século XVI ao XVIII, desde o primeiro abalo da Reforma, se concentrou numa luta
anticlerical, antirreligiosa. Foi em função mesmo da posição dominante do aparelho ideológico do Estado religioso”. Ressalte-se que
“aparelhos ideológicos de Estado”, segundo Althusser, definem-se por funcionarem principalmente através da ideologia, e
secundariamente através da repressão (atenuada, dissimulada ou simbólica). ALTHUSSER, op. cit., p. 78.
55
Op. cit., p. 373.
Além disso, isolava grupos sociais, instituindo veleidades autonomistas que comprometiam a
própria estabilidade das áreas periféricas e do sistema colonial como um todo. Isto afetava não
apenas a economia estatal, pelo aumento dos contrabandos, redução dos quintos e diminuição de
rendimentos, mas atingia diretamente o poder político do Estado luso, que se enfraquecia e até
mesmo, em certos momentos, desaparecia totalmente.
Na ação direta da transformação, aparece novamente a violência e a coerção como fatores e
instrumentos característicos do Estado burocrático, que se impunha. Fazia-se presente “... a
eliminação sistemática de todas as formas de oposição ao poder do Estado absolutista luso [...] além
de corrigir abusos e modernizar a estrutura administrativa, centralizando decisões em escala
crescente”.
56
A coerção é mantida também sobre os jesuítas.
57
Essa violência processou-se fora dos
limites teoricamente aceitos pelo poder de Estado absolutista, envolvendo grupos e instituições
suspeitos de desafiarem, de alguma forma, o poder do Estado. Reforça-se aqui o uso desta violência
sobre determinados grupos sociais na região platina oriental e no sul do Brasil colonial,
especificamente os colonos açorianos, instrumentalizados como frutos deste poder.
No plano diplomático, os tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777) foram
significativos, por retratarem os novos objetivos do Estado luso, e representarem definições que se
enquadravam com suas novas necessidades administrativas. Na verdade, politicamente o Tratado de
Madri iria representar, caso fosse levado a cabo, o início do término das lutas armadas e dos conflitos
fronteiriços hispano-portugueses. Tal atitude coadunava-se ideologicamente com o Estado que se
concretizava, em bases mais administrativas e preservadoras de áreas. Contudo, apesar deste Tratado
ter sido anulado pelo de El Pardo (1761), a política de reconciliação com a Espanha não cessou, mas
concretizou-se com o Tratado de Santo Ildefonso.
É preciso dizer que quando o Marquês de Pombal assumiu o ministério luso em três de agosto
de 1750, o Tratado de Madri já havia sido assinado em treze de janeiro do mesmo ano; e também a
saída de Pombal do governo acontecida em quatro de março de 1777 precedeu a assinatura de Santo
Ildefonso, que foi em outubro deste ano.
58
Isto quer dizer que não se pode atribuir ao governo
pombalino exclusivamente, a responsabilidade pelas atitudes geradas pela mudança ideológico-
política ocasionada neste período. Na verdade, o Estado constituiu-se numa estrutura muito maior
que os desmandos de um único ministro. Destaque-se a importância de Pombal, mas insira-se tal
56
Ibidem, p. 374.
57
Ilustre-se aqui a questão da violência sobre os jesuítas, embora estes não sejam objeto deste estudo. Cita Avellar: “À fase restritiva
irá seguir-se outra, repressiva precedendo à punitiva”. AVELLAR, Hélio de Alcântara. História Administrativa do Brasil.
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