“O sistema patrimonial, ao contrário dos direitos, privilégios e
obrigações fixamente determinadas do feudalismo, prende os
servidores numa rede patriarcal, na qual eles representam a extensão
da casa do soberano”.
29
A rede patriarcal pressupõe um posicionamento de fidelidade. No entanto, a fidelidade
referida ao cargo de funcionário patrimonial não é exatamente aquela que faz com que esse dito
servidor público execute suas tarefas objetivamente, mas sim uma fidelidade natureza pessoal,
vinculado ao seu senhor, em grande parte baseada numa relação de afeto e devoção ao seu rei.
30
No
patrimonialismo, o funcionário é escolhido de acordo com a confiança pessoal, e não pela capacidade
deste em exercer determinada função,
31
. Nesse sentido, a Coroa passou a exercer uma política de
poder, quando, ao escolher os componentes dos diversos órgãos governamentais, fê-lo pela confiança
pessoal. Houve, na verdade, uma influência sobre a distribuição do poder, no interior do Estado. O
monarca tornou o escolhido um membro político, ao esperar por uma resposta adequada ao seu grau
de confiança.
Dentro do Estado patrimonialista o poder se tornou uma realidade tangível, dividido entre o
rei e seus representantes. Nessas circunstâncias, o campo de poder atingiu não apenas a unidade
central, mas espalhou-se, delegando, subjetivamente, autoridade. Esta, mesmo que não levada a
termo, em nível político, foi compartilhada durante certo tempo. O poder a partir de relações de força
entre as posições sociais, garante aos seus ocupantes um quantum de força social.
32
Assim, mesmo com possibilidade de lutas pelo monopólio do poder, reforçou-se em Portugal
a presença do Estado absolutista existente que legitimou o poder centralizado, mesmo lançando mão
de instrumentos auxiliares. O Estado luso dividiria o poder até o momento em que sofresse ameaça
de enfraquecimento, ou perda deste, o que, de fato, não aconteceu.
Essa afirmação poderia ser contestada, caso se levasse em consideração a concentração de
poder ocorrida durante o governo do ministro Pombal, no reinado de D. José I. Contudo, sem querer
29
Idem, p.20.
30
WEBER, Max. Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Econômica, 1944, pp. 775-776.
31
Idem, p. 837.
32
BOURDIEU, R. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989, p.27.
aprofundar discussões, ressalte-se que, mesmo aglutinando funções político-administrativas, em
nenhum momento a Coroa foi ameaçada de deposição. Nessa medida, a ação do Marquês de Pombal
visou sempre o mantenimento e o fortalecimento do poder centralizado, representado pelo rei D. José
I.
Percebe-se, portanto, que mesmo o rei respeitando e levando em consideração os vários
pareceres de seus representantes, estes estavam diretamente vinculados ao seu bem-estar e à
preservação do Estado. Em Portugal, o Estado passou por dois estágios distintos e importantes: o
patrimonialista e o burocrático. Embora o segundo tenha conservado traços do primeiro, a diferença
aparece através da ação administrativa e econômica.
O Estado patrimonialista surgiu a partir do desenvolvimento do comércio, expandindo-se com
a expansão marítima e a formação de colônias. Dessa forma, a chamada monarquia territorial
preocupou-se mais especificamente com a expansão, ocupação e preservação de áreas coloniais do
que com a administração das mesmas. Explica-se, dessa maneira, porque à Coroa interessava mais
funcionários leais a ela, que garantissem com sua pessoa a preservação territorial.
Em relação à região platina, a própria fundação da Colônia do Sacramento demonstra essa
ideia, e também na medida em que, nessa ação, foram designados militares para protegê-la. É claro
que o constante estado de guerra em que Sacramento se encontrava assim o exigia, mas, no século
XVIII, ao preocupar-se com a administração colonial, o Estado acabou cedendo a Colônia aos
espanhóis. Dessa maneira, a ação do Estado foi permeada pela tentativa de conquista e ocupação de
territórios no sul-colonial, desde fins do século XVII até a metade do século XVIII. A partir daí, a
política administrativa apareceu mais fortemente com o surgimento do Estado burocrático. Portugal
expandiu-se economicamente a partir do século XVI, originando, nessa ação, um Estado
monopolista, atuando como elemento reforçador do poder. No século XVII, pós-Restauração,
Portugal começou a atravessar uma crise econômica e territorial. Em vista disso, “verificou-se o
desejo de um controle da economia e das finanças por parte do Estado, característico do
absolutismo”.
33
Como foi salientado, a Coroa criou uma estrutura organizacional visando buscar apoio, tanto
político quanto administrativo. A partir de 1640, os monarcas portugueses estabeleceram prioridades
administrativas. Foram criados o Conselho de Guerra (1640), a Junta dos Três Estados (1643), o
Conselho Ultramarino (1643), a Junta do Comércio (1649), além de ser reformado, em 1642, o
Conselho da Fazenda.
34
33
Op. cit. p.247.
34
Na sequência, Serrão informa que o Conselho de Guerra tinha por função a expedição de ordens para os exércitos (terra e mar),
opinando junto ao rei na ocupação de cargos militares e julgando os crimes dessa jurisdição. A Junta dos Três Estados administrava os
Foi restabelecido também o cargo de Secretário de Estado, além da presença de ministros para
auxiliarem nos despachos. Nessa continuidade, surgiram as Secretarias de Estado e das Mercês e
Expedientes. Somados a isso, foram aumentados os órgãos consultivos em Conselhos, Mesas e
Juntas, com a finalidade de apoiarem a administração do sistema ultramarino, cujo rei centralizava o
poder.
35
Criado em 1642 e efetivado em 1643, o Conselho Ultramarino ocupava-se da administração e
das finanças do império colonial português. Os interesses comerciais lusos, resultantes do comércio
ultramarino, passaram a ser representados através do Conselho. A existência de tal órgão demonstra
que o Estado luso iria, a partir daí, ocupar-se com mais seriedade dos negócios do ultramar, mais
precisamente a África e o Brasil.
36
Os membros da presidência do Conselho eram escolhidos pelo rei,
entre a alta nobreza. Destacaram-se os condes de Vale de Reis (1674), de Alvor (1693), de São
Vicente (1708), e de Tarouca (1749). O número de conselheiros oscilou entre três e seis membros.
Quanto aos conselheiros, alguns tiveram notadas atuações, tais como Bernardim Freire de Andrade
(1694), Gonçalo Manuel Galvão de Lacerda (1724), Martinho Mendonça de Pina e de Proença
(1738), e o mais conhecido, pela sua atuação na elaboração do Tratado de Madri, Alexandre de
Gusmão (1743).
37
Em 1736 o Conselho Ultramarino passou a ser subordinado à Secretaria de Estado dos
Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos. O período de maior poder de atuação situou-se entre
os anos de 1750 e 1770, em virtude da grande documentação despendida.
38
A crescente importância
atribuída ao Conselho, ao longo do tempo, atestou a influência deste na política e na administração
do Estado, sobre as colônias lusas. As decisões e as ordens emitidas, com o aval da Coroa, atuaram
na movimentação do processo de ocupação. A fundação da Colônia do Sacramento, a sua
manutenção, e a vinda de colonos açorianos ao sul colonial, foram exemplos marcantes dessa
participação.
A conjunção político-administrativa impediu o desenvolvimento de setores que, por interesses
privados, quisessem desvincular-se do poder central. Conjugando a economia e a administração, a
Coroa exerceu um maior controle sobre os segmentos sociais. A estrutura patrimonial estabilizou a
recursos usados na guerra contra a Espanha, os soldos, o abastecimento das tropas e materiais necessários à mesma. Era composta por
seis membros, eleitos em Cortes. A Junta do Comércio garantia a navegação comercial com o Brasil. Competia-lhe a nomeação de
generais, almirantes e capitães das frotas mercantes, além do provimento dos armazéns, cobrança de direitos alfandegários e pagamento
dos encargos respectivos. Op.cit. pp.332-333.
35
Idem, p.125.
36
Ibidem, p.88.
37
Ibidem, p.277.
38
Cf. Helloísa Liberalli Bellotto. O Estado português no Brasil: sistema administrativo e fiscal. In: SERRÃO, Joel e MARQUES, A.H.
Oliveira. Nova História da Expansão Portuguesa. O Império Luso-Brasileiro 1750-1822. Coordenação de Maria Beatriz Nizza da
Silva. Lisboa: Estampa 1986, vol.8, p. 289.
economia, expandindo o capitalismo comercial, mas, de certa maneira, estancou o desenvolvimento
do capitalismo industrial. O patrimonialismo não ofereceu condições para o desenrolar desse
processo. O monopólio, mesmo fomentando intensamente as trocas, reduziu a burguesia nascente à
simples intermediária, na compra e venda de produtos.
39
O monopólio era fruto do mercantilismo.
Nesse sentido, a arte de governar, praticada pelo monarca, revelou-se mais fortemente quando este
racionalizou o poder que o Estado lhe conferiu.
O mercantilismo tornou-se um instrumento para que o Estado se identificasse como tal, e
pudesse ser utilizado como tática de governo. Ao mesmo tempo em que isso aconteceu, o processo
acabou por ser cerceado, quando a força do rei tornou-se o principal objetivo.
40
Por se ter
desenvolvido um grande aparelho de Estado,
41
o cerceamento da economia, pelo exercício do poder
centralizado, justificava a posição subordinada da burguesia portuguesa, afastada das decisões
econômicas.
42
No que tratou da ocupação da área platina, das constantes lutas entre luso-brasileiros e
espanhóis, a realidade evidenciou-se nas características do Estado português, no período. Preocupado
com o apossamento de territórios, no século XVII, principalmente, o Estado luso tratou de justificar a
ação ocupacional através da guerra defensiva. A Colônia do Sacramento, às margens do Rio da Prata,
era defendida militarmente, em função da agressividade do imperialismo espanhol.
Ideologicamente, a partir de Sacramento, a preservação do território conquistado assentou-se
no mantenimento de uma área que, por direito, pertencia ao Estado luso, segundo a sua própria
concepção. Os autores portugueses do século XVII percebiam a violência do imperialismo espanhol,
que não respeitava direitos e agredia Estados cristãos europeus. A Espanha, para esses autores, “tinha
um desejo ambicioso de expansão militar e econômica no ultramar”.
43
No rastro, portanto, de um
Estado patrimonialista, estruturado organicamente para servir a uma monarquia centralizada, seguiu a
teoria da defesa das gentes, dos direitos e dos países cristãos.
Ao aproximar-se a segunda metade do século XVIII, a composição orgânica do Estado luso
mudou. Ao reinado de D. José I (1750-1777), alinhou-se a crise econômica colonial, com o declínio
da produção de ouro e o cerceamento da expansão territorial, esboçada no Tratado de Madri e
39
FAORO, op. cit., p. 201.
40
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992, p.284.
41
Segundo Foucault, “...a partir dos séculos XVII e XVIII, houve verdadeiramente um desbloqueio tecnológico da produtividade do
poder”. Nesse período, as monarquias instauraram procedimentos, fazendo circular os efeitos do poder de modo contínuo, em todo o
corpo social. Idem, p. 288.
42
Utiliza-se o termo “aparelho de Estado” segundo a concepção althusseriana, sem levar-se em conta, conforme o próprio Althusser, a
comprovação de tal conceito. Conforme este autor, no aparelho de Estado, a coerção física é condição imanente, exceto na coerção
administrativa, que pode tomar formas não físicas, agindo, neste caso, o poder de Estado sob forma indireta. ALTHUSSER, Louis.
Compartilhe com seus amigos: |