III
DOS ESPAÇOS CERCADOS E DA SUA SACRALIDADE
O “ Nosso Mundo” situa-se sempre no Centro
Mircea Eliade, O sagrado e o profano.
Segundo Mircea Eliade, na sua obra O Sagrado e o profano, o homem
religioso manifesta o desejo de viver o mais perto possível do centro do
Mundo(33), o que teria como primeira consequência o desejo de situar a sua
própria casa no Centro, para a poder identificar com uma imago mundi.
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Assim, o Centro será justamente o lugar que se irá tornar sagrado: tanto
que, segundo este autor, a profunda nostalgia do homem religioso é de habitar
um “mundo divini” e desejar que a sua casa seja idêntica à “ Casa dos Deuses” (
34). Tal atitude manifesta uma consciência desiderante ( a que Sophia, nos seus
contos, não é alheia) e uma necessidade de reproduzir indefinidamente os gestos
exemplares. Todavia, este desejo de imitatio dei , de no fundo tentar fazer
triunfar o Homem dentro do homem, um dos princípios da paideia, aplica-se
quer à heroína de A Floresta quer à Alice . Isabel vai abrir-se de encontro a seres
que vivem na Natureza e vai assim despertar a sua experiência individual
transformando-a numa compreensão metafísica do mundo. Uma meta-realidade
para o leitor. Alice aprende a desaprender. É testemunha e cúmplice do absurdo,
do insólito, da surpresa e do inesperado que n os batem à porta todos os dias, no
nosso quotidiano. Faz uma adaptação a novas situações e resolve os dilemas
fazendo adaptações aos contextos, por mais estapafúrdicos que sejam.
Ambas as heroínas viajam em círculo. Para além das características do
espaço remeterem para uma circularidade, também os percursos que os heróis
iniciam são circulares, na medida em que partem de um espaço e a ele
regressam. A viagem é, assim, um símbolo iniciático através do qual se tem
acesso a um maior conhecimento que permitirá iluminar a consciência que o
regresso pressupõe. Desta experiência emerge o Ver, o Pensar , a Memória e a
Viagem como propulsores de conhecimento. Não nos esqueçamos de que as
Maravilhas estão dentro de nós, o jardim e a floresta crescem connosco.
Segundo Nelson Goodman, não encontramos no mundo senão aquilo que
lá tivermos posto (35), sendo que uma das formas mais elementares de
construirmos o mundo se situa ao nível da percepção visual. Logo, a conclusão
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segundo este autor é que não só o movimento mas também a identidade são con
struções e não dados. Então, a percepcção faz os seus factos: consequentemente,
as ficções não poderão distinguir-se dos factos na base do argumento de que
umas são “ fabricadas” e os outros “ descobertos”; uma vez que os factos são
construídos tanto quanto as ficções e as ficções podem ser informativas.
Ora, retomando Alice e os conceitos de Goodman, o jardim maravilhoso
corresponderá a uma construção de uma “versão-de-mundo”(36), através do
encanto de uma linguagem ecranlizada, onde se aprende a desaprender os
medos, os preconceitos e as certezas absolutas.
No fundo, mais uma vez se verifica que todo o texto está ligado a
problemas que podemos encontrar noutros textos, embora tratados
diferentemente, devido ao seu diferente lugar no interior da sociedade e da
história: uma noção que tem que ver com o que foi referido na introdução a este
estudo, nomeadamente com o conceito de semântica de profundidade e com a
interpretação enquanto processo psicológico.
Será fácil, portanto, para o leitor, relembrar em Isabel um desdob
ramento de Alice, seja na relação íntima que estabelecem com o Mundo da
Natureza, quer pelas suas atitudes relacionais para com esse mesmo Mundo,
quer ainda pelo mesmo problema de fundo com que defrontam o leitor: um
problema de conhecimento.Valerá a pena recordar que um dos temas queridos
de Sophia, o tema da justiça, é abordado no conto A floresta a propósito do
abuso do poder, algo análogo à atitude da Rainha de Copas perante o resto do
baralho. Tanto Alice como Isabel tentam inverter as regras do jogo, ajudando
terceiros cujas vidas correm risco. Por último, percebemos com estas heroínas
que as coisas extraordinárias e fantásticas também são verdadeiras; que os com
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plementos circunstanciais de lugar influenciam decisivamente a sua acção- o
modo de ser e estar-no-mundo do sujeito, o qual por sua vez, e fechando o
círculo, se vai metamorfoseando, ganhando outros atributos e modelações, que
vão fazer com que outras valências dos mesmos verbos surjam e que outros
complementos circunstanciais se acrescentem aos primeiros. Tudo isto leva-nos
a relectir nestas afirmações de Lima de Freitas:
Com efeito, “o crescimento do lugar (orientação no espaço) e o conhecimento
do momento ( orientação no tempo) resultam de um único processo complexo de
relacionamento, simultaneamente celeste, terrestre e cíclico (…) o lugar onde se
está e o momento em que se está são aspectos da mesma realidade e cada lugar
como cada momento são, não apenas um todo, mas um todo único”(37), que
procedem de um olhar único. Por conseguinte, o jardim que acontece no interior
do jardim ( tal como o lindo jardim no país das maravilhas de Alice), esse
espaço terceiro que rompe, é algo de imprevisível, de surpreendente: o que se
cria é o que não existe. O virtual instala-se no espaço / tempo e a orientação do
sujeito vai no sentido da actualização da memória de um desejo, de uma saudade
de futuro, de uma força imaginal criadora de vida , promotora de outros estados
de consciência, uma Porta para o núcleo central do eu: o Si Mesmo enquanto
Outro.
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NOTAS
1-
Para Greimas, a narrativa é um espaço onde se avalia a capacidade performativa de um sujeito / herói,
pela prestação de determinadas provas, com vista a uma transformação lógica, situada entre dois
estádios narrativos estáveis. Distingue ,assim, Greimas o espaço tópico, lugar onde se manifesta
sintacticamente a transformação. Greimas,A.J.Maupassant-La Sémiologie du texte,p99.
2-
Ricoeur, Paul, Teoria da Interpretação,1976,p.49.
3-
Piaget,jean, “ O que subsiste da teoria da Gestalt na Psicologia contemporânea da inteligência e da
percepção”, in Problemas de psicologia Genética,1977,p.140
4-
Durand, Gilbert, As estruturas Antropológicas do Imaginário,1989, p. 279
5-
Piaget, Jean, La Répresentation de l`espace chez l`enfant, Paris, 1948, pp. 532-535
6-
Bachelard, Gaston, La Poétique de l`espace, 1957,p.184
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